Na segunda-feira Patrice Cheréau morreu em Paris, vítima de um cancro do pulmão, que já tornava previsível este desiderato.
Porque se tratava de um dos mais estimulantes encenadores e realizadores de cinema do nosso tempo, valerá a pena evocar a sua obra no quanto ela nos soube estimular desde os anos 60, tornando-o «compagnon de route» da nossa inesgotável curiosidade intelectual.
Artista precoce, Patrice Chéreau impôs-se rapidamente devido á originalidade dos seus pontos de vista críticos, ao poder do seu universo plástico (que se interligará, desde muito cedo, com o do cenógrafo Richard Peduzzi) e pela radicalidade da sua direção de atores. O lirismo da sua escrita cénica exalta a presença carnal, concreta dos corpos.
Desde 1963, quer no teatro, quer na ópera, desenvolve uma visão tão pessoal quanto o seria a de um escritor, de um pintor ou de um ensaísta, através de um reportório eclético e coerente.
Quando se afasta dos palcos para se dedicar mais plenamente á sua obra cinematográfica é para aí revelar a mesma força e singularidade igualmente reconhecidas.
Nascido em Lézigné, filho de um pintor e de uma desenhadora, adquire, desde muito jovem, uma vasta cultura artística e teatral.
Aos 19 anos encena «A Intervenção» de Vítor Hugo no Liceu Louis-le-Grand, transformando-o num melodrama popular quase expressionista, para o qual concebe também os cenários, já então exprimindo o gosto pela teatralidade e o fascínio lúcido pelas relações de poder e de sedução, aqui sob a perspetiva da luta de classes.
Em 1965, «Fuentovejuna» de Lope de Veja confirma o interesse por um material político: Chéreau aborda o fracasso de uma revolta camponesa num estilo épico influenciado por Brecht, Strehler e sobretudo Planchon - com objetos realistas, luminotecnia intensa e afirmação das cenas de grupos.
No ano seguinte, em «O Caso da Rua Lourcine» de Labiche, reescreve o epílogo para o tornar mais pessimista e acentua o discurso anti-burguesia através da expressão poética na intensidade grotesca (na maquilhagem e nos gestos dos atores), que se impõe como um estilo e um sentido.
Propõem-lhe então a direção do Teatro de Sartrouville nos arrabaldes parisienses. Em 1967 cria aí «Os Soldados»: numa sala de castelo em ruínas, com arquiteturas clássicas em “trompe l’oeil”, mostra um mundo aristocrático decadente. Oficiais obcecados pela luxúria, exercem um sadismo crescente sobre Marion, uma jovem burguesa à procura da emancipação.
Mostrando a derrota da sua revolta amorosa, Chéreau inaugura uma longa série de retratos de personagens traumatizados na infância pela ineficiência do seu individualismo ou idealismo: Don Juan, Ricardo II, Toller, as crianças de «A Disputa», Lulu, Peer Gynt ou Hamlet - todas elas personagens de recusa romântica ou hedonista do mundo real. Da nostalgia da inocência Chéreau nunca abstrai a sua componente de narcisismo ou de fuga.
Em Sartrouville, convida Mnouchkine, Vitez e empenha-se num significativo trabalho de animação. E logo o Maio de 1968 leva-o a, conjuntamente com os seus pares, a equacionar a ação cultural em função do “teatro popular”.
A autocrítica radical será expressa ironicamente no «Preço da Revolta no mercado negro» (1968) de Dimitri Dimitriadis e, mais gravemente, no Don Juan» (1969) de Molière: para Chéreau a libertinagem do grande senhor comporta ao mesmo tempo uma subversão autêntica e uma trágica impotência política. O principal elemento da cenografia, a “máquina de triturar libertino” movida pelo povo, mostra o fracasso dessa aventura individual - fracasso análogo ao do artista ou do intelectual “militante”.
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