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«À Sombra da Montanha» é um filme singular na forma como alia a investigação à atmosfera de um outro tempo, ao confrontar o espectador com uma época há muito ultrapassada. E, no entanto, a tuberculose foi uma pandemia que marcou e fez sofrer europeus durante mais de um século, apesar de já quase nada restar desse passado nas estâncias de tratamento mais conhecidas de então. Como Davos, aqui representada no filme, ou o nosso Caramulo.
O filme evoca as décadas de 30 e de 40 do século passado, quando a Europa passava por um dos seus piores pesadelos e durante as quais haviam cidadãos das diversas potências beligerantes a coabitarem nos Alpes suíços.
Tratando-se de um dos primeiros e mais conhecidos sanatórios, Davos não escapou aos sobressaltos da História. Da época pacata do início do século até à ascensão do nazismo , culminando na adequação ás solicitações dos vencedores da Segunda Guerra Mundial, adivinha-se como esse universo, aparentemente preservado, acaba por representar um modelo reduzido de uma Suíça exposta às pressões exteriores.
Nessa estância imortalizada por Thomas Mann na sua «Montanha Mágica», cruzaram-se sucessivamente por essa época socialistas, chefes nazis, militares americanos e sobreviventes de campos de concentração.
O filme aborda as evoluções ocorridos nesse cenário a partir da experiência pessoal da própria realizadora. É que, através das cartas do pai, descobrira, entretanto, as razões para as suas insuportáveis ausências.
Conta ela: O meu pai, tuberculoso, passou longos anos no sanatório, sobretudo antes de eu nascer, e depois enquanto era bebé. Custou-me suportar a distância e as ausências que a doença instaurava entre nós.
Ao reler atentamente as cartas do meu pai para a minha mãe durante essas estadias forçadas na montanha, que me decidi a ir a Davos.
Escritas antes e durante a segunda guerra mundial, elas evocam não só a doença, mas também a situação política da Suíça de então. Ora, os meus pais eram tanto mais sensíveis á ascensão do nazismo e ao fecho progressivo das fronteiras quanto, sendo o meu pai suíço, a minha mãe era judia oriunda da Hungria.
Decidi-me, então, a retratar de forma ficcional, o meu próprio percurso de descoberta, através de um testemunho em voz off na primeira pessoa onde, dando a escutar algumas das cartas do meu pai, aproveito para inquirir sobre Davos e os sanatórios, locais de que ignorava o seu lado escondido e violento.
Foi assim, que descobri que após a época dourada dos sanatórios - a do tempo suspenso e das festas de máscaras - a História fez uma entrada brutal em Davos. De facto, essa pequena cidade, conhecida pelo seu ar puro, pelos hotéis de luxo e pela sua paisagem, não tardará a ser um espaço muito peculiar aonde não tardam a cruzar-se oficiais nazis (hóspedes dos sanatórios sob o controle direto do Reich) e as vítimas do nazismo, a par desse episódio burlesco dos aviadores norte-americanos confrontados com as paradas dos inimigos nas ruas da vila.
Ao longo da investigação utilizei a linguagem muito direta e datada do meu pai sobre a situação da época, intercalada com a perspetiva documentada de historiadores especializados nela.
O aspeto mais curioso do filme tem a ver com o facto de tanta gente ficar refém de um contexto de que não se consegue libertar e em que a própria vida parece estar sempre em risco.
Nos materiais sobre o filme também é curioso encontrar uma resenha histórica, que o ajudam a aprofundar: em maio/junho de 1940, milhares de soldados franceses, marroquinos e polacos, que fogem à invasão alemã, encontram refúgio na Suíça ao longo do Jura. É assim que a Suíça recebe mais de 200 mil refugiados entre 1940 e 1945, na maioria internados em campos de trabalho na agricultura e na construção civil. Ao contrário, os refugiados judeus intercetados na fronteira são quase todos recusados e encontrarão a morte nas câmaras de gás.
Desde abril de 1933, um decreto do Conselho Federal afirma que “os israelitas não devem ser considerados refugiados políticos”.
Em setembro de 1938 foi a própria Suíça a solicitar à Alemanha a obrigatoriedade de afixação de um carimbo com um «J» nos passaportes dos judeus alemães e austríacos, que tentavam entrar na Suíça ao consumar-se o Anschluss e a Noite de Cristal.
Até agosto de 1942, os que se apresentassem nas fronteiras suíças, ora eram admitidos, ora eram recusados. Os que conseguiam entrar clandestinamente conseguiram maioritariamente salvarem-se. Mas, a 13 de agosto de 1942, uma circular oficial anuncia o encerramento das fronteiras com os refugiados, que fugiam por razões raciais, a não serem considerados como refugiados políticos.
Heinrich Rothmund, chefe da divisão federal da polícia, afirmava que «o barco já tem lotação esgotada».
Esta medida permanece em vigor até julho de 1944, data em que Berna aceita acolher todos os refugiados civis cuja vida e integridade física estivesse ameaçada. O que corresponde a um reconhecimento implícito dos judeus como refugiados. Só que, por essa altura, já são muito raros os judeus ameaçados capazes de chegarem às fronteiras suíças.
Segundo o relatório Bergier, publicado em dezembro de 1999, foram pelo menos 24 mil os judeus a quem foi recusada a entrada nas fronteiras suíças, mas admite-se um número efetivamente muito maior, já que foram muitos os arquivos destruídos depois da guerra.
A dureza das autoridades da época assenta na recusa em acreditarem no pior dos cenários. E, no entanto, Berna fora informada no fim de 1941 dos massacres dos judeus a leste. No final de 1942 poucas dúvidas sobram sobre a existência de campos de extermínio, mas o Conselho Federal recusa-se a mudar de política em nome da «razão»: é que a maioria dos cantões recusava-se a aceitar mais refugiados entre 1942 e 1943. O antissemitismo latente estava bastante disseminado entre os dirigentes suíços desde o início do século XX, que acreditavam na dificuldade de assimilação dos judeus e na ameaça à judaização do país.
Só em 1995 é que o Conselho Federal apresentou desculpas públicas ao povo judeu.