segunda-feira, 19 de agosto de 2013

LIVRO: «Que Importa a Fúria do Mar» de Ana Margarida de Carvalho

Desde muito cedo comecei a ter a noção, que as injustiças eram uma realidade demasiado próxima para que pudesse confiar nos supostos desígnios divinos.
Quando, ainda mal me iniciara na escola primária, um dos meus amigos mais chegados ficou esmagado nos rodados de um camião, não pude aceitar os ditos das velhas que repetiam ter-se tratado da “vontade de Deus!”
Decerto que também não seria essa a explicação  para a pide vir buscar o Mariano numa madrugada para nunca mais voltar, nem sequer para assistir ao funeral da filha ainda púbere, logo de seguida levada pela tuberculose.
Os estudos só me viriam a confirmar essa ilação, que António Aleixo glosaria numa famosa quadra: o mundo estava cheio de crápulas, que morriam de estômago cheio cobertos de medalhas e honrarias, enquanto gente bem mais valorosa sofria as penas do inferno ainda na sua vida terrena.
Como poderia aceitar a existência de um deus de costas viradas para essa realidade? É que se hitler ou mussolini tiveram a noção das consequências dos seus crimes, quantos ditadores tenebrosos terão acabado os seus dias na ilusão da impunidade de todas as vilanias de que se lembraram para humilhar, violentar e explorar os seus súbditos?
Foi tudo isso que evoquei ao ler o recente romance de Ana Margarida de Carvalho até por trazer ao universo ficcional a revolta da Marinha Grande em 18 de janeiro de 1934 e a tenebrosa prisão do Tarrafal.
Quanto a esse momento palpitante da revolta popular contra o Estado Novo - com a implantação de um soviete por algumas horas! - importa lembrá-lo como exemplo do inconformismo de muitas camadas sociais perante a  imposição do salazarismo, sobrando coragem a quem não se deixava intimidar pela repressão feroz a que se sujeitava.
Se nos anos subsequentes à Revolução de Abril ainda se evocavam os heróis dessa batalha perdida, a privatização dos media tem sonegado às gerações mais novas a gesta  de tantos antifascistas injustamente esquecidos.
E com o Tarrafal vai acontecendo o mesmo! Enquanto os sucessores de hermano saraiva na mistificação dos quarenta e oito anos de ditadura publicam livros e artigos, que pretendem dar uma perspetiva branda desse período, vão-se silenciando quantos procuram que não sejam esquecidos os crimes horrendos cometidos pela pide e outros meliantes ligados ao antigo regime.
Mal andaram os militares de abril quando desaproveitaram as circunstâncias histórias suscitadas pela Revolução e não levaram a cabo julgamentos a sério de tantos criminosos, que continuaram, e continuam, anos a fio a passearem-se entre nós.
Pessoalmente o Tarrafal também me faz recordar dois irmãos, que afinidades familiares trouxeram ao meu convívio. Ambos haviam ali sido carcereiros de presos políticos logo que o campo da morte foi inaugurado. Mas quanta diferença entre eles: um assemelhar-se-ia ao guarda Cabaço do romance de Ana Margarida de Carvalho e depressa pediu escusa de funções voltando para a Metrópole para se empregar, graças a um conhecido oposicionista (Cândido de Oliveira) num emprego a coberto das pressões dos antigos patrões. Quanto ao outro, que refinado biltre! Nos cinquenta e muitos anos de vida, que já conto no cartão de cidadão, foram poucos os que o igualassem em malvadez, em mesquinhez.
E, no entanto, nos anos de Democracia em que ainda viveu, embora andasse sempre alerta para alguma vingança tardia, nunca houve quem lhe chegasse a roupa ao pelo por quanto se mostrara cioso na repressão dos prisioneiros à sua guarda. Em testemunhos escritos de quem ali passou anos de sofrimento ele é um dos que mais se referencia como dileto executor das ordens do sinistro diretor da prisão.
Será de admirar que, ademais, se mostrasse católico devoto com participação empenhada na missa diária na igreja do seu bairro lisboeta?
Um dos grandes méritos do romance de Ana Margarida de Carvalho é, pois, o de nos recordar o sofrimento atroz por que passaram centenas de antifascistas, que perderam a vida, a saúde e os seus verdes anos num cenário que Dante não desdenharia transferir para o seu inferno.
Mas muitas outras razões poderia adiantar para o prazer da leitura de «Que Importa a Fúria do Mar».
Existe o detalhe da descrição dos espaços em que os personagens evoluem ou a inserção de pequenas histórias colaterais à principal: a da lenta narração da experiência de vida de um homem pouco dado a submeter-se a estruturas hierarquizadas (mesmo que de contestação ao regime!), que envia um maço de cartas de amor à namorada antes de embarcar para o Tarrafal e, tantos anos passados, regressa a casa e encontra-a quase irreconhecível e casada com quem lhe levara essas missivas.
Para além da abordagem de um período incontornável da História portuguesa do século XX, o romance constitui mais uma variação do tema da idealização do ser amado que, na realidade, se dissocia muito rapidamente do que sobre ele se imaginara.
Se já apreciávamos a escrita da autora enquanto jornalista e crítica de cinema, ficamos expectantes para a continuação do seu mister de escritora depois de um romance demasiado amadurecido para ser entendido como uma obra fundadora da sua bibliografia.


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