Em artigo anterior vimos que, com «Les Immémoriaux», Victor Segalen quis traduzir em romance a sua indignação pelo processo de destruição das línguas e culturas polinésias perpetrado pelos colonizadores europeus.
O livro divide-se em três partes: na primeira temos uma descrição do Taiti anterior à chegada dos colonizadores e dos missionários. Na terceira repete-se essa descrição, mas já com os efeitos de vinte anos de acão “evangelizadora”. E, pelo meio temos a segunda e mais interessante parte do livro, com a vertente marítima e lendária a ser explorada.
Logo de início há a questão da língua sagrada: a falta de memória do jovem Terii simboliza esse processo de aculturação intencional. Complementado pela dramática morte do velho Tupua, o único que ainda conhecia as palavras necessárias ao cumprimento dos ritos dos antepassados.
Temer-se-á, então, que se concretize o dobre de finados pela cultura maori, mas o rapaz chegara a ouvir-lhe essas palavras e a saber repeti-las, a exemplo daquelas crianças que, no romance de Bradbury e correspondente filme de Truffaut (“Fahrenheit 451”) aprendiam livros de cor para que não se perdessem, apesar de incendiados pelos polícias da ditadura.
De facto Terii até se torna cristão, mas conservará as palavras tão necessárias à conservação da identidade do seu povo.
Segalen documentara-se bastante para escrever este romance, que também não deixa de constituir um interessante estudo etnográfico.
Conta, primeiro que tudo, com a inspiração de Gauguin, que morrera três meses antes de aportar aos portos do arquipélago e o leva a escrever: Posso dizer nada ter visto do país e dos maoris antes de ter percorrido e quase vivido os rascunhos de Gauguin. O artista representará para o jovem médico um rebelde, que até se mostrava indiferente ao facto de se situarem fora-da-lei muitos dos comportamentos ali assumidos.
Em jeito de homenagem escreve o texto «Gauguin no seu último cenário», que é publicado no «Mercure de France» em junho de 1904.
Depois de concluído este romance, Segalen imagina-lhe uma sequela sob a forma de epopeia e em que uma réplica do pintor intentava ressuscitar a cultura maori ao pressionar para que se restabelecessem os antigos cultos.
Quer «Les Immémoriaux», quer tudo quanto escreveu no âmbito do ciclo oceânico, caracteriza-se pela reação violenta contra a religião e a moral rígida a que se sujeitara enquanto estudara em colégios jesuítas.
A experiência também lhe vale a conceção do projeto de elaboração de um «Ensaio sobre o Exotismo» para que começa a tirar notas em abril de 1904 à vista de Java, e as continue vida fora até ao derradeiro apontamento em outubro de 1918, a escassas semanas do seu fim.
Durante catorze anos Segalen nunca abandonara essa ideia, que lhe seria aliás muito útil para enriquecer o seu «ciclo chinês». Concebendo o exotismo como estética do diferente ele inova a literatura de viagens conferindo-lhe uma inédita caução etnológica. E, ao dar a palavra a um maori, e depois a um chinês, denota um pensamento ideológico pioneiro sobre a compreensão e exposição dos valores do Outro.
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