quinta-feira, 8 de agosto de 2013

OS FILMES DA MINHA VIDA: «O Império dos Sentidos» de Nagisa Oshima

No verão de 1974 o sexo aterrou em força nos ecrãs portugueses.  Estava então a cumprir serviço militar na base do Alfeite, quando se estrearam filmes particularmente concupiscentes pela boa dose de polémica suscitada em França, como sucedera com «O Último Tango em Paris» ou «La Grande Bouffe». Vê-los era quase uma obrigação social, porque alimentavam as conversas de messes e salões.
Razão para, após muitas voltas dadas à parada do Grupo 2 nas intermináveis aulas de Infantaria, ou nas não menos entediantes sessões teóricas na Escola Naval, darmos por concluídas as obrigações de jovens cadetes para nos apressarmos a apanhar a lancha para o Terreiro do Paço. Aos magotes enchíamos as salas de cinema da Avenida da Liberdade e discutíamos acaloradamente os sentidos explícitos e implícitos do que vislumbráramos nos ecrãs. Mesmo quando as cenas reservadas na mente tinham mais a ver com a libidinosidade que sugeriam do que propriamente com a vertente intelectual com que aparentávamos conferir outra substância aos respetivos conteúdos.
Foi por essa altura que conhecemos os filmes de Nagisa Oshima, mais adequados às salas do Saldanha ou das Avenidas Novas aonde sugestionavam espectadores mais gulosos de valores e culturas diferentes. E, depois de «O Enforcamento», um filme lindíssimo como «Cerimónia Solene» perduraria até hoje como um dos que escolheria para a dvdteca de exceção a levar para a mítica ilha desértica.
Mas Oshima sairia posteriormente do pequeno mundo dos cinéfilos mais militantes para o conhecimento do grande público, quando assinou este «Império dos Sentidos», que foi discutido um pouco por todo o lado.
Ora, precisamente, nesse ano de 1974, o realizador japonês - então já com 43 anos de idade! -, não conseguia encontrar no seu arquipélago quem financiasse e produzisse filmes tão avessos ao gosto dos compatriotas. Encontra então a alternativa em França junto do aristocrata Anatole Dauman, da Argos Films, que sempre gerira a sua carreira de produtor de provocação em provocação.
Com este «Império dos Sentidos», estreado em 1976, e depois, com a sua sequela, «O Império da Paixão» em 1978, Oshima atinge o ponto culminante da  carreira de realizador, depois fenecida em títulos desinteressantes, ainda que acompanhados de algum sucesso público como foi o caso de «Feliz Natal, Mr. Lawrence».
«O Império dos Sentidos» passa-se em 1936, quando a jovem Sada é contratada por uma casa de chá.
Uma manhã, vendo-o a copular com a esposa, enamora-se do seu patrão, Kichi. Ciente do efeito nela causado, o homem apressa-se a possui-la, quando a apanha de cócoras a lavar o chão do estabelecimento.
Inicia-se, então, uma relação a dois, feita de sexo puro e duro e a assumir para Sada um carácter cada vez mais obsessivo. Ela quere-o a toda a hora, estimulando-o para conseguir dele uma ereção priápica e afastando-o da esposa.
No bordel aonde se refugiam passam os dias a fornicar e a beber, sem se alimentarem nem saírem do quarto, exceto quando Sada sai para ganhar o sustento junto de um rico protetor.
Compreende-se melhor o nome dessa personagem feminina, quando vemos o sexo a evoluir para formas cada vez mais violentas de um sadismo, que implicam estrangulá-lo até quase ao limite para garantir a maximização da ereção.
Esse jogo amoroso culmina com a morte definitiva de um consentâneo Kichi, destinado a facultar a Sada um orgasmo superlativo.
Face à morte do amante, Sada decepa-lhe o pénis e passeia-se com ele, quase sonâmbula, pelas ruas da cidade até ser aprisionada.
Para a conceção do argumento, Oshima baseara-se na história real de uma mulher, que matara e castrara o amante, ao que acrescentou a explicação lógica para esse ato tido como o culminar de um processo de desejo absoluto levado até á sua derradeira dimensão.
Nesse sentido o filme revela o rigor irrepreensível de um teorema matemático: demonstra-se que o orgasmo não condiz com o auge do prazer, apenas possível na ascese. Daí que os amantes renunciem a comer e a dormir ou a manterem qualquer relação social. Obceca-os a continuidade do prazer, que se revela longe de se esgotar na efemeridade dos orgasmos.
Na fase mais avançada dessa evolução amorosa, o homem chega a renunciar á ejaculação para perdurar o mais possível a ereção. E, na sua suprema dádiva, renuncia ao seu órgão e à própria vida para propiciar o prazer absoluto da amante.
Num corolário admissível ao mesmo teorema conclui-se que, se o prazer é em si uma interligação com a morte.
À crítica da época não escaparam as referências a Michel Leiris e a Georges Bataille, no que respeita à conjunção entre eros e thanatos, ou ao mito de Tristão e Isolda tal qual Wagner o explorou, e que explorava a paixão amorosa enquanto suprema alienação do ser.
Poucos foram os filmes, que mostraram de forma tão fria o ato sexual. Nesse sentido muitos pornógrafos ter-se-ão sentido vítimas de «publicidade enganosa». As penetrações não são vistas, os felatios assemelham-se a  beijos apaixonados e o sexo masculino, arroxeado, não corresponde ao estereotipo dos vislumbrados nos filmes classificados para adultos.
Na realidade, se Sada deseja passear pela cidade com o sexo do amante na vagina, não é propriamente para o sentir, mas para proclamar depois o quanto eles continuam a fornicar sem cessar.
Ao realizar «O Império dos Sentidos», Oshima pretendera compensar a frustração de, a exemplo de Masumura ou de Yoshida, não ter conseguido levar por diante o projeto de filmar as histórias eróticas de Mizoguchi. Este terá sido o filme em que mais se aproximou desse sonho irrealizado.
Quanto à atriz, que personificou Sada, viu aqui acabada a promissora carreira cinematográfica a que parecia votada acabando na miséria depois de anos de exibições nos cabarés japoneses a representar o papel daquela que protagonizara o escandaloso filme, que todos tinham visto, mas não queriam confessar...



Sem comentários:

Enviar um comentário