segunda-feira, 5 de agosto de 2013

MÚSICA: o jazz enquanto arte da improvisação


A primeira vez que me libertei do preconceito contra o jazz, ainda não fizera vinte anos e era oficial de máquinas no petroleiro «Inago».
Um dos oficiais da ponte era o Leitão, que fascinava quase todos com um comportamento completamente a contrario dos usos e costumes de então, mesmo considerando-se quão eles estavam revoltos pela Revolução de Abril ainda tão fresca.
Por ele aprendi que a música não se limitava aos Pink Floyd ou aos Who, justificando-se atenção demorada em Beethoven ou em Miles Davis.  Ou que a política não se deveria limitar aos preceitos do Livro Vermelho de Mao, porque existia uma urgência em salvaguardar um planeta constantemente a ser agredido. A Ecologia era uma novidade, que nele encontrava expressão, o que constituía um paradoxo tendo em conta o rasto de poluição, que íamos deixando para a ré do navio, quando lavávamos os tanques aonde se tinham transportado hidrocarbonetos por refinar.
Começava aí um amadurecimento, que me levou a pôr em causa os valores e os gostos até então semelhantes a qualquer outro miúdo acabado de sair da adolescência.
A influência do Leitão perduraria desde então apesar de ter conhecido um final trágico nesse final da década de 70, quando comandava um pequeno navio de cabotagem em viagens entre São Tomé e a Ilha do Principe. Um dia, quando passeava na capital do arquipélago, foi surpreendido entre dois fogos numa malograda tentativa de golpe de Estado. Seria uma das poucas vítimas mortais desse episódio menor dos tempos pós-independências e exemplificaria para sempre o conceito de se estar no sítio errado à hora errada.
Nunca mais deixei de ouvir jazz desde então e conheci momento particularmente grato quando, uma noite em Nova Iorque, fui a uma das caves de uma das ruas com vista para a ponte para New Jersey e vivi uma madrugada memorável a beber gin e a assistir às improvisações dos cinco instrumentistas, que ali atuavam naquela noite.
Nessa altura já me convertera em marinheiro que perdera as graças do mar e, por isso, não via já hipóteses de algum dia aportar a Nova Orleães, esse berço fundador desse estilo musical, que melhor representa a América.
Wynton Marsalis define muito apropriadamente o jazz como uma forma de arte improvisada resultante do consenso de estilos pessoais de um grupo de instrumentistas reunidos para dar azo à sua capacidade para improvisar. Os músicos dialogam entre si com os seus instrumentos e explicitam, quase sem disso se aperceberem as contradições do próprio continente: entre o ter e o não ter, entre a felicidade e a tristeza, o campo e a cidade, o negro e o branco, o homem e a mulher. Entre a velha África e a velha Europa.
Uma música em permanente transformação, embora quase sempre mantenha as raízes no blues. Tocada por quem nela assegura o sustento mas, ao mesmo tempo, é capaz de arriscar ao máximo todas as noites.
Como dizia Art Blakey o jazz lava a poeira da vida do dia-a-dia. E mexe connosco por constituir uma celebração da vida.  Ou Albert Murray: Ver um músico de jazz a tocar é como ver um pioneiro, um explorador, um cientista. Porque o jazz é a materialização do processo criativo. 
O jazz desenvolveu-se em muitos sítios mas, enquanto estilo musical, nasceu em Nova Orleães que, no início do século XIX, era a cidade mais cosmopolita e musical dos EUA. Mas também um centro de tráfico de escravos ainda tolerado num país que acabara de proclamar legalmente a igualdade entre todos os homens.
E foram precisamente os descendentes dos seres que haviam sido tratados como mercadoria quem acabariam por criar essa expressão artística. Tomando por base a improvisação tão necessária ao escravo para sobreviver num ambiente adverso aonde chegava sem conhecer a língua, nem a comida, nem sequer os hábitos instituídos. Sem essa capacidade para improvisar o recém-chegado ao continente americano estava condenado.
Não admira, pois, que o jazz tenha interiorizado a estratégia dessa mesma improvisação!



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