Lembro-me bem da morte de Salvador Allende. Estava em casa ao fim da tarde, quando o telejornal anunciou o golpe de Estado no Chile e a morte do Presidente.
Estava-se em 1973 e havia grande expetativa entre os meus amigos sobre a evolução da experiência do governo de Unidade Popular, que procurava construir o socialismo a partir de eleições convencionais em vez de se socorrer da receita leninista da Revolução violenta.
Até pelas notícias vindas sobre as manifestações com panelas e caçarolas na capital ou sobre a greve dos camionistas por todo o Chile adivinhava-se que as coisas não estavam a correr bem, mas não poderíamos imaginar a brutalidade do que se seguiria. As semanas seguintes, mormente quando se conheceu o assassínio de Victor Jara, foram de grande tristeza.
Nós que estávamos a contas com a ditadura há mais de quarenta anos, olhámos para aqueles acontecimentos e tememos não acedermos à liberdade tão cedo. Era fácil concluir que a CIA e o Pentágono nunca permitiriam governos socialistas onde quer que fosse repetida aquela experiência. E que Mao tinha razão ao dizer que a Revolução nunca poderia ser um convite para jantar.
Os factos davam razão aos que tinham previsto que os socialistas e os comunistas chilenos pagariam um preço trágico pela imprudência em quererem respeitar as regras da democracia burguesa.
Naquele 11 de setembro, choveu em Santiago e o fascismo liderado por sinistra criatura instalou-se por dezena e meia de anos. Quando aportei a Valparaíso ou a Puerto Montt em 1990, Pinochet já perdera o referendo, mas o medo ainda era bem palpável nas ruas que calcorreava. Polícias e militares vigiavam as ruas e não existiam sinais exteriores de uma transformação já em marcha com a tomada de posse de Alwyn no mês seguinte.
Longínquo estava o clima de festa, que trouxera as pessoas dos bairros altos a invadir de alegrias e sonhos as grandes avenidas das principais cidades. Aquelas que, na sua última mensagem, Allende viria a pressagiar voltarem a ganhar o carácter festivo depois de vencida aquela momentânea tragédia.
Desde então não há ano nenhum em que, a 11 de setembro, não recorde Allende e a sua ilusão sobre a possibilidade de os ricos e poderosos prescindirem pacificamente do seu estatuto. Uma lição que nunca mais poderá ser esquecida… sobretudo nesta altura em que volta a ser tão evidente a distribuição desigual de rendimentos e de direitos sociais!
Vinte e oito anos depois manifestou-se uma outra forma de fascismo nos atentados terroristas contra as Torres Gémeas do Wall Trade Center.
Haverá quem torça o nariz à designação do tipo de ditadura instituída por Mussolini aos fanáticos islâmicos que, naquele dia, deram rosto à sua intenção em imporem um tipo de política sem lugar para a diversidade de opiniões ou de crenças religiosas. Mas entre Pinochet e os comandos liderados por Mohammed Atta a mando de Bin Laden, a diferença não é muita: em número de vítimas mortais equivalem-se nas mais de três mil vítimas.
E ambos os casos equiparam-se igualmente em desrespeito pela vida humana e vontade em infletir uma imparável dinâmica histórica, que se orientava para uma maior justiça social num caso, e para uma decidida modernidade cosmopolita no segundo.
Muito embora valorize mais a memória dos acontecimentos chilenos do que os nova-iorquinos, a mesma data estimula pensamentos ambivalentes em que se mantém a crença nos ideais de Allende, mas se adivinham ainda muitos obstáculos para os alcançar. Até porque os generais ou os barbudos mentais de então foram substituídos pelos bem mais poderosos ayattollahs da alta finança, apostados em concentrarem em si toda a riqueza disponível, dando a troikas e governos aparentemente democráticos a incumbência de manterem submissos os indignados empobrecidos...
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