quinta-feira, 30 de maio de 2013

LIVRO: «Um Escritor Confessa-se» de Aquilino Ribeiro (9)

No 50º aniversário da morte de Aquilino Ribeiro continuamos a revisitar a sua obra autobiográfica «Um Escritor Confessa-se», (edição da Bertrand em 1974) bastante elucidativa quanto aos seus anos de formação, aqueles que o irão moldar como corajoso lutador político contra todas as formas de opressão.
Nesta nona abordagem apanhamo-lo a regressar à rudeza das suas terras beirãs para comparecer perante a Junta Militar, que deverá estar despachada em três dias, e quando já usufrui rendimentos, mesmo que limitados, dos textos publicados à peça nos jornais de Lisboa. E ele que partira dali ávido de outras modernidades irá, singularmente, deixar-se fascinar pelas cores, cheiros, sabores e pessoas dali como se fossem novidade para si. Até porque descobre ali uma certa forma de liberdade diferente da da Lisboa republicana ainda submetida a um rei crepuscular.
A Primavera esplendia com todo o seu fulgor, e as suas tintas, no mato o amarelo do tojo e da giesta, o vermelho-púrpura das urzes e rosmaninho, o branco da esteva e bela-luz, no centeal o ocre palhetado de verde, enchiam os olhos. Cantavam por toda a parte os pássaros, que eu deixara de ver havia muitos meses e agora as suas vozes soavam aos meus ouvidos como aleluias.
(...) Meu pai tinha preparado na junta militar a minha isenção. Não parece ter-lhe sido difícil. Não era eu um senhorito, que trazia gravata e sapatos engraxados?
Havia de me ir embora três dias depois, como prometera ao «casaca» da Tavares Cardoso. Deixei passar a semana, atrás da semana o mês. Mandei vir obra para a serra e comecei a expedir o meu trabalho regularmente.
Tinha-me deixado possuir da feitiçaria das coisas ternas da natureza, de que só então dei conta que existiam. Eu reintegrava-me no meio de que derivara, e nessa operação sentia a delícia das delícias. Era como o lagarto que, depois de hibernar, se espreguiça ao sol.
Na nossa propriedade, contígua à casa, a batata, o feijão e outros primores da terra medravam a bom medrar, bafejados pela graça, representada pela abundante água de mina, o esterco dos estábulos, sacho constante e sol. Minha mãe fazia já a sopa com «beijinhas», as vagens tenras que ia ela própria cortar dos feijoeiros, adubando-a a presunto e salpicão.
Mandava todas as manhãs tirar batatas novas, tão tenras que bastava friccio­ná-las na mão fechada para despirem o fino manto da pele. Aferventadas, derretiam-se na boca como bombons. O homem prende-se pela gula, como todo o vivente. Há um sentido que vem após. Com efeito, ao gozo e prazer da liberdade corresponde qualquer órgão no animal, ilocalizado como o da direcção em certos bichos, tão premente que ele lá está ora e sempre, e chega a prevalecer mesmo aos demais sentidos.


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