No final deste mês comemoram-se cinquenta anos sobre o desaparecimento do grande mestre, que foi Aquilino Ribeiro. Na sequência de seis textos anteriores, aqui no blogue, vamos prosseguir a abordagem dos seus anos de juventude recorrendo ao seu livro de memórias «Um Escritor Confessa-se», que havíamos deixado, quando ele abandonara de vez a possibilidade de enveredar pela vida religiosa e trocara o Seminário de Beja pela aliciante vida lisboeta.
Encontramo-lo então alojado numa casa de hóspedes, aonde convive com uma fauna muito característica, capaz de lhe aguçar o sentido de observação: À mesa da pensão, com empregados de comércio, estudantes, militares, funcionários públicos, era como que o microcosmo da urbe. Eu, recém-chegado, apoucava-me a um canto a admirar a facilidade de maneiras dos comensais. Todos me pareciam grãos-senhores, chegados duma embaixada ao Papa, dando ao dente com honra para os pitéus, que o não mereciam. E perante o majestoso da sua filáucia, senti-me ínfimo e descoroçoado. Quando chegaria eu a possuir rasgo e ciência do mundo bastantes para nivelar com esta gente experimentada da vida, fluente na expressão e com um aparato fácil de gestos?
Ninguém se dignava ter um olhar para mim ou ter para comigo uma atenção, e eu merecia-o que vinha dum seminário de campónios por esfalcar, nascera e me criara nas madrigueiras da serra. Comprazia-me deste modo a rever a minha canhestria e bisonhice. E achava bem feito, mas interiormente revoltado, que a própria criada, a menina Augusta, a servir, me deixasse para o fim de todos.
Mas essa estadia, em 1904, é de curta duração já que lhe faltam os meios e o emprego bastantes para lhe proverem o suficiente para se governar. Depressa tem de reconhecer a inevitabilidade de regressar a Soutosa, aonde teria garantida na casa paterna a alimentação e a cama lavada.
Bem castigado eu fui pelas rebeldias com ter de vilegiaturar três quartos do ano na aldeia, voltando
a costear o rio de coisas de que me havia segregado a condição de estudante. Não me integrei perfeitamente na vida rústica, pois que não me prestei a cavar a terra nem a preocupar-me com o rendimento dos agros.
a costear o rio de coisas de que me havia segregado a condição de estudante. Não me integrei perfeitamente na vida rústica, pois que não me prestei a cavar a terra nem a preocupar-me com o rendimento dos agros.
Mas tão-pouco a rocei como um senhorito. À parte os
meus hábitos de leitura, a que são avessos os camponeses, ia dizer por muita sorte, tratando-se dos livros escolares em que aprendem, depois, dos livros que lhes metem à cara nos escaparates, pouca diferença fazíamos.
meus hábitos de leitura, a que são avessos os camponeses, ia dizer por muita sorte, tratando-se dos livros escolares em que aprendem, depois, dos livros que lhes metem à cara nos escaparates, pouca diferença fazíamos.
Ia às festas, às feiras e romarias com eles, bailava nos
terreiros, e, frequentando os serões estabulares, tomava parte em zaragatas, bodeganas, bandeado em suas maltas.
terreiros, e, frequentando os serões estabulares, tomava parte em zaragatas, bodeganas, bandeado em suas maltas.
Levei tão longe o meu aldeanismo que, nos despiques de povo para povo, últimos vestígios ou últimos reflexos das antigas guerras tribais, vislumbráveis nestas rixas, eu alinhava na falange do lugar, armado de varapau e revólver.
Embora contrariado ele não deixa de recolher novos conhecimentos para o seu futuro ofício de escritor, já que os passeios pelo campo ou as caçadas vão-lhe ofertando uma perspetiva bem mais alargada do que é a natureza: Eu, à força de calcar devesas e montados, aprendi a conhecer ao simples lance de olhos as madrigueiras da zorra, em que mora e cria, e as covas do coelho, distinguindo aquelas em que se acoitam quando perseguidos e aquelas em que se abrigam quando neva. Sabia os recostos onde pernoitam as perdizes consoante a temperatura do dia e os sítios predilectos dos prados a que costumam acudir logo de manhãzinha a almoçar as fibrilhas tenras dos cereais nascentes ou o grão das leiras que se esfarelou da espiga no punho dos segadores.
Sem comentários:
Enviar um comentário