terça-feira, 28 de maio de 2013

LIVRO: «Um Escritor Confessa-se» de Aquilino Ribeiro (8)

Passaram ontem cinquenta anos sobre a morte de Aquilino Ribeiro. Como comemora-lo devidamente passa por o ler prosseguimos a abordagem da sua autobiografia «Um Escritor Confessa-se», em que ficáramos na sua primeira (e falhada) tentativa para se radicar na capital, decidido que fora o abandono da vida clerical para a qual estivera a preparar-se no Seminário de Beja de má memória.
Para o ex-seminarista não é fácil encontrar emprego num país marcado pelo estertor cada vez mais evidente do regime monárquico.
O Ultimato inglês causara cicatrizes profundas, que a ditadura de João Franco só iria abrir ainda mais. Mas a consciência política do jovem beirão só então começava a despertar através do convívio com os intelectuais e ativistas políticos, que alimentavam as tertúlias nos muitos cafés lisboetas.
Aquilino ia ouvindo muito e participando pouco até porque o dinheiro escasseava a a mesada enviada pelos pais não chegava para as despesas a que tinha de fazer face.
Não tarda que ele adie o seu projeto regressando a Soutosa. Para regressar ao convívio com a natureza rude dos contrafortes da Serra  e com as suas gentes.
 Nas manhãs secas de Inverno, quando a nossa respiração ergue um halo no ar álgido, nada mais regalado também do que caçar o maçarico ou o pato bravo tolinho, que se haja extraviado do bando e entrado pelas terras. O solo, pungido do codo, solta debaixo das botas ferradas um gemido quase animal. Ao longe, a bruma ligeira, que não consegue sobrepor-se à roxidão dos montes, sacode o fraldil pardo. Os pinheiros perfilam-se hirtos e os gaios e os melros gritam exaustinados nos bosquedos.
Essa convivência com os amigos com quem caça ou com os demais aldeões com quem se cruza será fundamental para aprofundar um conhecimento aprofundado da vida austera e dura de quem vivia esquecido pelas élites lisboetas. Muitos dos seus personagens criados nos seus livros serão inspirados por muitos dos que então conhece:
Se não fora o Melo, a minha vida naqueles ermos teria decorrido num plano mais que bárbaro, ostrogodo, antes da vinda de Cristo, e escandalizar-se-iam os olhos melindrosos de civilizados, perfumados a houbigant, e que à noite ouvem Mozart pela Rádio, se me pintasse em tal ambiente. A vida social, estatuída em leis e artes
correlativas, mal palpitava por tais portelas, e ainda hoje está aqui e além embarrancada nos poviléus montesinhos desde pouco menos do milénio.
Está dito, o tempo ali é uma serpente, uma longa serpente de rabo na boca à maneira do Zodíaco, que tem a cauda na cardenha de Astolfo, sogro de Viriato, que comia a papa-la-versa nos pratos de oiro palmados na Bética, e a fronte no chalé caiado do volframista.
E ainda hoje a modernidade, ali, é sempre rara, plaqué ou pechisbeque no metal e no toque.
Como pôde isso ser, perguntar-se-á à face de outros povos europeus, sedentos de progresso tanto nas cidades como nas comarcas rurais, onde não é possível verificar um estádio tão recuado de humanidade? À pergunta seria difícil responder e sempre conjeturalmente. É certo que o clima temperado retarda os habitantes, que não têm necessidade de lutar pela vida. Mas em Portugal, mormente no Norte, o clima é irregular, rigoroso
no Inverno, e o solo pobre.
Embora não tarde a tentar nova mudança para Lisboa, Aquilino jamais se dissociará desse ambiente, que o marca profundamente e lhe garante a genuinidade dos caracteres determinados com que se enriquecerão os seus romances:
Os veros habitantes da aldeia figuram nas páginas dos meus romances, retocados ou em carne viva, descritos parcialmente ou na íntegra, debaixo de uma leve mascarilha. Os próprios - já tive a prova - reconhecem-se no leve farricoco. Não vale a pena, pois, levar o seu retrato ou água-forte mais longe ou reescrever a crónica dos seus feitos. Esta rememoração é apenas mais objectiva e concentrada. Porque os trago agora à colação ? Porque estou sozinho a representar e a minha vilegiatura na aldeia foi mais que um monólogo. Contracenam comigo. Quando me vim embora, trazia a aldeia nos poros, no sangue e no cérebro.




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