Anteontem manifestava aqui o meu entusiasmo pela peça em cena no Teatro do Bairro, intitulada «Depois da Revolução», e já outra se me revela com o mesmo padrão de qualidade e de capacidade para surpreender.
«Menos Emergências», o novo projeto de Ricardo Neves-Neves com o Teatro Elétrico, em exibição nas instalações do Meridional até ao próximo domingo, dia 18, confirma o que temos constatado nos últimos anos: num país onde o governo se demite do seu papel de fomentador da criatividade dos seus artistas, estão a surgir novos atores e encenadores cujo talento e inventividade nos andam sucessivamente a surpreender.
As três peças de Martin Crisp aqui mostradas dão-nos a classe burguesa no seu esplendor, a comentar a vida alheia através do recurso abundante aos lugares comuns. Mas o que pareceria ser uma sucessão de diálogos de chacha, depressa se converte numa inesperada sucessão de revelações com o seu quê de surreais, mas em que se mantém as entoações com que são proferidas. Há algo da provocação Dada no que aqui vemos interpretado.
Temos pois comentários sobre um casal desavindo, em que a mulher depressa se terá arrependido do compromisso conjugal e decide sair de casa, mas acaba por não o fazer, porque - questionam os que dialogam sobre ela -, por que haveria ela de o fazer?
Há depois a história do psicopata, que assassina um numeroso rol de vítimas, algumas das quais crianças, mas que nada no seu passado poderia explicar o seu gesto. Porque tivera uma educação excelente, uma vida excelente, uma família excelente, e assim por diante.
E há a história final, que quase parece talhada para o nosso presente. Onde se diz convictamente que “as coisas estão a melhorar”, como se se precisasse de dizê-lo para acreditá-lo. E logo temos quem corrobora e exemplifica: “a luz está mais brilhante”. E temos então a história de um casal que tem um iate, e navega nele até ao oceano, quase se chegando à orla. E lá temos os personagens a questionarem-se sobre o que haverá para lá dela, nessa orla muito parecida com a «saída limpa» da troika. Nada, concluem!
Estas histórias, aparentemente anódinas, dizem muito mais sobre todos nós do que a ligeireza de tom com que são interpretadas, pressupõe. É que somos muito facilmente embalados pela musicalidade desses diálogos feitos tantas vezes de clichés, mas que nos levam até revelações sobre o que ali se passa à nossa frente, que nos põe atónitos a perguntar se ouvimos bem quanto foi dito: então o Bobby ouve vozes na cabeça? Então foram quatro as crianças assassinadas pelo psicopata? Então o Bobby (será o mesmo?) não atende o telefonema dos pais, porque só se movimenta arrastando-se escada acima?
Aos dez atores em cena acrescenta-se a orquestra e um coro com dezenas de vozes, que transformam o espetáculo numa espécie de superprodução feita decerto com muito empenho por gente jovem, que não baixa os braços e continua a dar luta às contingências criadas por um poder inculto e incompetente.
Os espectadores vão fazendo os possíveis por apoiar esse admirável esforço: a exemplo do que víramos no Teatro do Bairro, também o Meridional estava cheio durante as representações deste fim-d-semana!
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