Um dos problemas que se tem colocado aos militantes de esquerda é a pouca atenção dada á história das experiências políticas dos regimes comunistas do século XX, arrumando-os liminarmente na classificação de «totalitários» e sem se procurarem compreender as razões do seu desvio em relação à matriz marxista de que eles se deveriam reclamar.
Pessoalmente continuo a apostar nessa matriz enquanto ferramenta de análise fundamental para interpretar as relações de classes do presente e a dinâmica das suas lutas no futuro. Por isso importa identificar as encruzilhadas onde as opções tomadas pelos dirigentes comunistas ou socialistas conduziram a becos sem saída.
Recuemos então cem anos para chegar ao estudo assinado por Lenine a respeito da política económica de Marx, que interpreta mais de acordo com a sua visão subjetiva do que com o formulado pelo filósofo alemão: “o que é novo e extremamente importante em Marx é a análise da acumulação do capital, ou seja a transformação de uma parte da mais valia em capital e a sua utilização no aumento da produção.”
Ora em nenhum dos escritos de Marx se encontra essa conversão da mais valia noutra coisa que não seja em capital, omitindo assim a possibilidade dele servir para incrementar a produção.
Lenine parecia, então, algo perplexo com o impasse sobre o agravamento da exploração dos trabalhadores , suscitado pela acumulação do capital, seja através do aumento do número dos proletários, seja pela agudização das suas formas de exploração.
Pouco depois de concretizada a Revolução de Outubro, Lenine escreve «O Estado e a Revolução» onde defende o controle bancário como forma de criação de uma economia socialista, já que tornaria possível o controle da produção e a distribuição da riqueza.
Para sua surpresa o setor bancário irá resistir com determinação à dinâmica revolucionária, impedindo a previsão do dirigente bolchevique quando, em dezembro de 1917, dizia haver - apesar da guerra! - pão, ferro, madeira, lã, algodão e linho bastantes para satisfazer as necessidades coletivas, desde que fossem corretamente distribuídos.
Nos campos, a revolução bolchevique tratou de abolir a propriedade privada das terras, permitindo a qualquer cidadão, homem ou mulher, cultivar a terra desde que não tivesse de recorrer a mão-de-obra exterior.
Nas fábricas institui-se o controle operário sem se avançar para a nacionalização da indústria. Lenine explica o porquê ao admitir a utilização de métodos de produção capitalistas nas fábricas (a taylorização) para facilitar o desenvolvimento mais rápido da economia.
Depois da assinatura do tratado de paz de Brest-Litovsk com a Alemanha, Lenine mantinha o discurso: a principal dificuldade do novo regime residia na introdução da gestão e do controle da produção, da repartição dos bens e do crescimento da produtividade passíveis de edificarem a economia socialista.
Em 1920, depois da vitória na Guerra Civil, Lenine discursa perante a Liga das Juventudes Comunistas e defende a eletricidade como fundamental para a criação da sociedade comunista: Só com a eletrificação em todo o país, de todos os setores da indústria e da agricultura (…) poderão criar a vossa sociedade comunista”.
A NEP - Nova Política Económica - lançada dois anos depois, manterá essa obsessão com a eletrificação de campos e cidades.
Mas, mesmo com a vitória militar, a crise da economia soviética obriga a medidas drásticas: em março de 1921, no X Congresso do Partido, Lenine substitui as antigas requisições de víveres aos camponeses por um imposto em géneros fixado no início de cada primavera (e depois convertido num imposto em dinheiro), autoriza a comercialização da produção excedentária e legaliza a circulação do dinheiro, mesmo mantendo as terras nacionalizadas.
Essa política estabilizará, de facto, a situação económica: em 1927 a Rússia consegue voltar a igualar a produção industrial e agrícola de antes da 1ª Guerra Mundial, mas à custa do aumento das desigualdades nos campos, sobretudo graças a uma proliferação de intermediários (os nepmen), que contribuirão para o aumento da burocratização.
Os laços entre a prática leninista e as teses marxistas mereceriam uma análise profunda, envolvendo o próprio estalinismo, que ainda mais se desviou a matriz teórica original ao avançar para a coletivização da atividade agrícola, algo sempre evitado nos primeiros anos da Revolução.
É fácil concluir que, no seu embate com as realidades do seu tempo, o leninismo teve de flexibilizar as suas práticas, dissociando-as dos princípios teóricos que as poderiam potenciar.
Desde então a esquerda continua à procura, entre várias propostas teóricas mais ou menos próximas dos formalismos democráticos, qual a melhor para conduzir ao objetivo de uma sociedade sem classes...
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