quarta-feira, 14 de maio de 2014

ARTE: Odilon Redon e a moral dos monstros

Passam agora três anos sobre a memorável exposição monográfica consagrada a Odilon Redon no Grand Palais em Paris, que foi acompanhada de um catálogo de referência sobre um pintor que, em plena época naturalista, produziu um conjunto de obras oníricas  e torturadas ainda hoje tidas por enigmáticas.
Bertrand Redon, mais conhecido por Odilon Redon, nasceu em 20 de abril de 1840, quando os pais acabavam de regressar da Luisiana (EUA), para se fixarem de novo na terra da família. Ele é o segundo dos cinco filhos do casal, antecipando-se-lhe o primogénito Ernest, e sucedendo-lhe Marie, Léo e Gaston.
Sendo-lhe diagnosticada uma saúde muito frágil, Odilon é entregue aos cuidados de uma ama na propriedade vinícola de Peyrelebade (perto de Bordéus), adquirida pelo pai, quando ainda estavam do outro lado do Atlântico.
Durante a infância Odilon ora estará em Bordéus, ora em Peyrelebade, onde vive com o tio. Nessa zona campestre situada no Médoc, muito perto das Landes, passa muito tempo a sonhar, a ver as nuvens a passar e atento à natureza.
Se o artista sempre silenciou o que aí terá sentido, não faltaram psicólogos e psicanalistas a sublinharem o efeito do ambiente nos passeios solitários de uma criança ainda tão pequena. Num desenho de 1870 vê-se um personagem perdido na paisagem e acompanhado de uma citação de Pascal: “o silêncio eterno destes espaços infinitos intimida-me.”
Trata-se pois de uma vida pacata com grande influência da religião, como se comprova na tentativa de o levarem em peregrinação à Basílica de Verdelais (a sudeste de Bordéus) para que se pudesse curar da epilepsia, doença que se lhe detetou em 1850.
Aos onze anos já se sente melhor e vai viver com os pais em Bordéus, onde lhe é propiciada uma educação burguesa. Na escola aborrece-se, exceto quando tem a possibilidade de desenhar, ganhando um prémio com uma das suas primeiras obras. Mas também se exercita no piano e no violino. São contudo os pintores, os aguarelistas e os botânicos quem dele merecem a maior admiração.
Em 1857 os pais enviam-no para Paris onde poderá estudar arquitetura a contragosto. Ora estando na capital, ora em Bordéus, ele inicia carreira como desenhador ou na gravura, frequentando diligentemente os meios artísticos.
É em Bordéus, que ele mais aprende. O desenhador a gravador Rodolphe Bresdin ensina-lhe a prática da litografia e os efeitos dramáticos das grandes placas negras a escorrerem tinta irão permitir-lhe libertar todos os seus fantasmas. Colherá, igualmente, a influência do botânico Armand Clavaud, que o inicia na obra de Spinoza, na biologia, nos trabalhos de Darwin e nos escritos de Baudelaire, Poe ou Flaubert. Doravante os ensinamentos da ciência e da literatura irão influenciar a obra de Redon, estimulando-lhe uma fértil imaginação onde se conjugam estreitamente o real e o irreal, o consciente e o inconsciente.
Peyrelebade será o sítio privilegiado onde cria o conjunto dos «Noirs», seja em desenhos a carvão, seja em álbuns litográficos.
No primeiro intitulado «Dans le Rêve» (1879), entre o predomínio dos negros e dos brancos brilhantes  intromete-se uma aventura plástica com imagens de sonhos assombrados pela confusão do mundo real e a sua dimensão fantástica. Um globo ocular desorbitado surge obsessivamente, não só como órgão da visão mas, sobretudo, enquanto símbolo de uma intensa vida interior
A litografia serve a Redon para homenagear os seus amigos criando álbuns consagrados a Poe, Goya ou ao Flaubert de «A Tentação de Santo António».
Escreve: “ depressa fiquei seduzido pela parte descritiva dessa obra, pelo relevo e cor de todas essas ressurreições de um passado.” É quando surgem todas as formas de terríveis animais, uma cabeça de morto com uma coroa de flores e a figura de Cristo no centro de um disco solar.
Se os álbuns litográficos são uma forma de fazer circular a sua obra, Redon não despreza a técnica do carvão no papel pintado. Encontra-se aí o terror das origens e das transmutações secretas, que modificam o rosto humano e dotam os monstros de uma vida moral.
Ao percorrermos as suas obras, encontramos «O Corvo» (1882) inspirado em Poe, as aranhas, a que sorri e a que chora, que parecem um eco de uma frase de Jules Michelet: “os insetos têm uma fisionomia?”, «O Girino» (1883), que escapa a todos os reinos, ou ainda «Planta gorda» (1881) com uma figura bárbara.  Todos esses personagens integram uma viagem ao absoluto mais profundo de uma angústia, que suscitou de Mallarmé o comentário: “não conheço um desenho que comunique tanto medo intelectual e simpatia tenaz”.
Na viragem do século a carreira de Redon evolui. Vende muitas obras, os críticos elogiam-no e por todo o lado há quem lhe elogie o talento. Os colecionadores interessam-se: Robert de Domecy confia-lhe o seu primeiro mural e Gustave Fayet encomenda-lhe a decoração da biblioteca da Abadia de Fontfroide.
Os demónios que o perturbavam dão-lhe sossego e as cores surgem sob a forma de sumptuosos ramos de flores e de um conjunto de retratos da mulher, do filho Arï ou de Gauguin, com quem Redon partilhava a perspetiva de uma arte influenciada pelo simbolismo. E se ainda se encontra uma estranha fantasmagoria submarina intitulada «La Coquille» (1912) é para concretizar um fascinante exercício de estilo ligado ao nascimento de Vénus.
Na mesma época toda uma geração de artistas reconhece-o como um dos seus mestres. Para Maurice Denis, Redon determinou a evolução da arte da última década do século XIX numa perspetiva espiritualista. E Bonnard dirá: “O que me impressiona mais na sua obra é a reunião de duas qualidades opostas: a matéria plástica muito pura e a expressão deveras misteriosa”.


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