Uma das razões para nos sentirmos fascinados pelas ideias de Montaigne tem a ver com o facto de quase excluir a possibilidade de existência de uma identidade pessoal, porque cada indivíduo mais não é do que o contemporâneo de si mesmo.
Essa é a primeira surpresa com que deparamos, quando lemos este filósofo do século XVI: a sua espantosa modernidade, que o tornam pertinente em muitas das questões filosóficas do nosso tempo.
Montaigne aconselhava a que nos focalizássemos no momento que estamos a viver em vez de nos perdermos a olhar para o nosso umbigo. E propunha uma metodologia: deixarmo-nos levar por caminhadas pelas ruas da cidade, pois seria essa a forma mais prática de nos reencontrarmos.
Para ele o pensamento acompanha o movimento do corpo, do qual nunca se consegue dissociar. Por isso até considerava imprescindível, que as suas pernas começassem a mexer para que a mente lhes acompanhasse essa dinâmica.
Desenganem-se, pois, os que procuram em Montaigne um pensamento imutável: ele altera amiúde a sua opinião, até mesmo dentro do mesmo texto. E, como se verifica em «Sobre os versos de Vergílio» pode nem sequer abordar o tema anunciado pelo seu título, pois, nesse caso em concreto, orienta-se logo de início para as relações entre homens e mulheres.
Leitor atento de Platão, Montaigne não enjeita o erro, que para ele pode ser o ponto de partida para o conhecimento. Por isso a melhor forma de o ler não é de fio a pavio: mais vale irmos pegando num parágrafo aqui, outro além, e deixarmo-nos sugestionar pelas pistas por ele lançadas.
Por exemplo esta frase, que ele vai buscar a Epíteto: ”o tormento dos homens não provém das coisas, mas da ideia que delas fazemos”. Assim, se vivemos a angústia da morte, ela não decorre dela mesma, mas da ideia que sobre ela conjeturamos. E até coloca a possibilidade de estarmos a viver dentro de um sonho em que vida e morte pouco signifiquem.
Uma possível metáfora do pensamento de Montaigne é o do fluxo de um rio a passar por uma catarata em que se reconheça a razão atribuível a Heraclito (“nunca conseguiremos banharmo-nos duas vezes nas mesmas águas do rio”), sinónimo das mudanças permanentemente a ocorrerem em nós.
Por isso mesmo Montaigne antecipa-se a uma dos princípios fundamentais do método científico: devemos rejeitar a certeza categórica de algo, porque se trata de uma ilusão sempre ameaçada. E, dando provas de grande humildade intelectual, não tinha qualquer pejo em citar abundantemente outros pensadores, porque considerava que só através do que eles tinham afirmado conseguia expressar melhor o seu próprio pensamento.
Rejeitava, pois, que alguém fosse capaz de pensar, exclusivamente, pela sua cabeça, porque fazemos, - mesmo sem disso termos consciência -, a síntese do que outros já tinham concluído.
Outra imagem ajustada ao pensamento de Montaigne é a de um cavaleiro montado num cavalo, que vai a trote, porque simboliza esse equilíbrio permanente entre o movimento, que nos impele para a frente, e o imobilismo para que nos sentimos tentados.
Mas talvez o que mais admiro em Montaigne é a forma como desvaloriza a morte, lembrando a cena de José Saramago no topo ventoso de um dos cumes de Lanzarote no filme «José e Pilar» em que a resume à simples constatação de um dia estarmos cá, e no outro, termos deixado de estar. Para Montaigne “a morte não é mais do que o momento em que a vida cessa”.
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