Vladimir Jankélévitch diz que quem fala sozinho arrisca-se a passar por louco, mas o que canta só para si - como se fosse um pássaro, sem se dirigir a ninguém em especial! - é tido como alegre e simpático. O que não deixa de ser estranho já que o canto é mais impúdico do que a palavra falada.
De facto, está tacitamente aceite que a fala é destinada à comunicação já que se aceita a natureza puramente expressiva do canto, sempre ligado a um sentimento de se ser. Por outras palavras, enquanto comunicamos verbalmente com outrem, temos as autodefesas necessárias para lhe esconder algo que não lhe queremos revelar, enquanto, ao cantar, estamos a exprimir-nos a nós próprios como se se tratasse da primeira tonalidade da nossa existência.
E de facto o canto constitui um dos mitos mais antigos da civilização ocidental como se depreende do exemplo que se segue: na «Odisseia» de Homero o canto surge como parábola, como metáfora, quando Ulisses faz com que os seus marinheiros fiquem ensurdecidos com cera do mel das abelhas a tapar-lhes os ouvidos e ordena que o prendam ao mastro do seu navio para conseguir ouvir, e ao mesmo tempo resistir, ao canto das sereias.
Será, pois, uma estratégia sem perigo, porque ele conhece a sorte destinada aos que não conseguem resistir a precipitarem-se para os braços dessas sereias: encontram inevitavelmente a morte.
Ulisses consegue, assim, neutralizar o poder de sedução do canto e torna-se no primeiro melómano. Preso ao mastro do navio, ele está como se sentasse na plateia de uma sala de concertos a ouvir uma orquestra. Mas essa cena também estabelece a distinção entre os remadores, que estão a trabalhar, e Ulisses, o único beneficiário do seu prazer musical. Uma situação, que mereceu de dois filósofos alemães - Theodor W. Adorno e Max Horkheimer - um estudo assaz interessante (“Ulisses ou Mito e Razão”) - ao identificarem essa contradição entre o Senhor, que goza os seus prazeres sem risco, enquanto os outros, os remadores, continuam presos às suas correntes sem qualquer compensação.
O navio, que se irá pouco a pouco afastando desse perigoso local, é uma representação da racionalidade a afastar-se gradualmente do mito. Como se a Razão precisasse de cotejar o mito, como forma de o superar.
Ulisses será, então, o primeiro homem moderno, ao dissociar-se do pensamento mítico (que era cantado) para avançar no sentido do progresso. O avanço do navio simbolizará o seu direcionamento para esse futuro racional ainda que à custa do trabalho árduo dos seus remadores.
A Razão, ainda assim, é vista como um desencantamento, uma saída do universo mágico em que o canto das sereias corresponde a uma espécie de língua primitiva, original. A História e a Cultura têm um papel fundamental nesse desencantamento em relação a algo de fantástico.
Jean Jacques Rousseau já propusera que o canto esteve ligado ás origens da Humanidade e que tudo quanto ocorrera desde então mais não fizera do que corromper a inocência absoluta desse passado mitificado, desnaturalizando-o. O canto teria, assim, degenerado em fala fazendo o ruído ascender à harmonia.
Se se tratava de uma linguagem perfeita, o canto foi substituído por uma oralidade falada cada vez mais complexa. A progressiva aquisição das palavras torna-se num adeus permanente ao canto.
(Texto baseado no livro «Chanter ou reprendre la parole» de Vincent Delecroix, ed. Flammarion)
Sem comentários:
Enviar um comentário