Às vezes os autores dos textos mais influentes do seu tempo não parecem corresponder ao carácter transgressor, que acabam por representar. Se pensarmos em Charles Darwin reconhecemos que a sua formação em Teologia e a sua inserção na classe mais abastada do seu tempo na Inglaterra não o indicava como o revolucionário, que iria pôr em causa os princípios mais conservadores do seu tempo ao confrontá-los com a sua teoria sobre a Origem das Espécies.
Noutro exemplo lapidar encontramos Freud cujo conservadorismo era evidente com a sua preocupação com as aparências e o tipo de família tradicional em que cresceu e viria a replicar. E, no entanto, muita da revolução sexual do século XX deve-se à explicação para os comportamentos recalcados baseados nos quais a Psicanálise se fundamentou como teoria científica.
Quer Darwin, quer Freud não podiam imaginar o efeito que as suas teorias iriam ter nas sociedades do seu tempo e das que se lhes sucederiam. Mas as suas constatações eram tão evidentes que, mesmo contra os seus preconceitos, tinham de as apresentar.
Vem isto a propósito do livro de Thomas Piketty - «Capital no Século XXI» - que está a conhecer um entusiasmo vibrante nos meios universitários americanos e europeus e é já considerado por Paul Krugman como o livro da década.
Não se assumindo como marxista, nem pretendendo pôr em causa o sistema capitalista, que continua a considerar como o único capaz de garantir a maximização da produção da riqueza a nível global, Piketty demonstra porém a falácia de algumas das suas principais bandeiras: nem premeia os empreendedores, nem consegue evitar uma progressiva concentração da riqueza nas mãos de um número cada vez mais reduzido de plutocratas.
O capitalismo, pelo contrário, fundamenta-se na transmissão patrimonial da riqueza de geração em geração, impedindo a ascensão social de quem jamais consegue acumular capital suficiente para sair da sua condição de classe. Ademais, garante um retorno de rendimento sobre tais bens, que excede em muito o correspondente crescimento da produção.
O resultado a prazo é a forte probabilidade de só por meios antidemocráticos ser possível garantir que o mesmo ritmo de rentabilização dessa acumulação de capital prossiga sem que a economia real produza ativos bastantes para a remunerar.
Piketty é muito crítico da solução austeritária adotada na Europa do sul para corresponder à crise das dívidas soberanas e defende, como alternativa, a forte taxação dos mais ricos de forma a devolver algum equilíbrio à forma como a riqueza é distribuída. Mas o alcance da sua exposição poderá ir muito além deste tipo de propostas, porque atingido nalguns dos seus princípios identitários, é o próprio capitalismo que está posto em causa.
Muito embora possa não passar de um fenómeno conjuntural, o livro de Piketty poderá vir a ser muito mais determinante do que ele próprio presumiria, quando se abalançou à sua escrita.
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