domingo, 4 de maio de 2014

IDEIAS: a dimensão abstrata do Mal absoluto (II)

Para Hegel ver o Mal significava ver mal, porque as dores individuais devem ser constatadas num âmbito mais geral definido pela razão histórica ou pela assumpção de um espírito objetivo. Ao vermos uma cena de massacre, por exemplo, Hegel diria sermos míopes por nos cingirmos a ela sem irmos mais além, para aquilo que nos diria a totalidade da História.
Hoje é difícil que aceitemos racionalizar o Mal em função de uma qualquer justificação. Porque corresponde a esquecer o sofrimento e a alteridade com ele associada.
Olhando para o vídeo da explosão atómica sobre Nagasaki é fácil concluir que o homem é o carrasco de si mesmo enquanto espécie. E é capaz de chegar à destruição total de toda a Humanidade.
Torna-se exequível uma História na qual não existiriam mais homens em função de uma causa humana. E em que deixa de se pensar que o Mal apenas corresponde à expressão de um momento. Mas já Jean Jacques Rousseau dizia que se a Humanidade confiasse plenamente na Razão, há muito que teria desaparecido, pelo que importaria valorizar o conceito de piedade, de compaixão. Que é o respeito pelas dores alheias, mesmo quando não são sentidas senão pelas vítimas.
No século XX a Humanidade está em liberdade condicional. É o que se depreende do célebre editorial escrito por Albert Camus para o jornal «Combat», quando, a 8 de agosto de 1945, comenta a explosão da bomba atómica em Hiroshima:
O mundo é o que é, ou seja, pouca coisa. É o que cada um sabe desde ontem graças ao formidável concerto que a rádio, os jornais e as agências de informação acabam de desencadear a respeito da bomba atómica. Informam-nos, de facto, no meio de uma multitude de comentários entusiasmados, que qualquer cidade de dimensão mediana pode ser totalmente arrasada com uma bomba do tamanho de uma bola de futebol.
Jornais americanos, ingleses e franceses multiplicam-se em dissertações elegantes sobre o futuro, o passado, os inventores, o custo, a vocação pacífica e os efeitos bélicos, as consequências políticas e até o carácter independente da bomba atómica.
Nós resumimos tudo isso numa só frase: a civilização mecanizada acaba de alcançar o seu grau derradeiro de selvajaria. Irá ser necessário escolher, num futuro mais ou menos próximo, entre o suicídio coletivo e a utilização inteligente das conquistas científicas.
O mundo pode, de facto, continuar a existir sem os humanos. Porque, como ficou demonstrado em Hiroxima e Nagasáqui, milhares de pessoas podem morrer num breve instante apenas porque um indivíduo carrega num botão a dez mil metros de altitude, o que quase se assemelha a uma abstração. O cogumelo até pode suscitar uma apreciação estética sobre a sua beleza, dissociado do efeito que provoca.
 O que nos pode levar precisamente a essa questão subsequente: em si o Mal não passa de uma abstração? Porque, seja no Ruanda, seja nas cidades-mártires do Japão, quem perpetrou os crimes voltou para casa à noite convencido da desresponsabilização dos seus próprios atos.
O século XX poderá ter trazido uma alteração da questão do Mal em função dos meios, das tecnologias, de que passámos a dspor.
Günther Anders reconhece essa mesma alteração com a chegada do século XX ao considerar inimaginável o que possa acontecer. De facto, nos meses anteriores a qualquer uma das guerras mundiais ninguém podia conceber a dimensão dos morticínios, que se seguiriam.
E estávamos ainda distantes de todas as novas tecnologias do século XXI, que incrementam essa dimensão abstrata do Mal produzido pelas guerras à distância de que os norte-americanos se estão a revelar tão especializados.



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