domingo, 4 de maio de 2014

IDEIAS: o Mal absoluto (I)

Pode-se fazer o mal pelo mal? É a pergunta que se pode colocar ao ler-se «Une Saison de Machettes», (2003) um dos impressionantes relatos que o jornalista Jean Hatzfeld  publicou em forma de livro sobre as terríveis chacinas perpetradas pelos hútus sobre os tutsis no Ruanda em 1994. Oitocentos mil mortos em quatro semanas seria o trágico saldo final.
No livro temos abundantes descrições de como gente aparentemente normal cumpria as suas rotinas quotidianas e dedicava-se depois a perseguir os vizinhos com machados para os matar sem qualquer escrúpulo. Decididos a, fossem eles velhos, mulheres ou crianças - desde que fossem tutsis - a exterminá-los até não restar nenhum!
O que é terrível constatar em tal relato é que esses carrascos não correspondiam em nada aos seres demoníacos, que imaginaríamos capazes de tais atos. À partida tratavam-se de pessoas tidas como “normais”.
É perante essa constatação, que gostaríamos de ter uma explicação.
Onde reside a origem de tal horror, desse mal no estado puro? Exige-se que se compreenda o que realmente se passou! È que o Mal seria mais facilmente digerível se constatássemos que o assassino nada tinha de humano.
Em vez de monstros deparamo-nos, porém, com assassinos, que são pessoas banais. Estamos assim no mesmo plano de perplexidade em que se situava Hannah Arendt, quando tentava compreender as motivações de Adolf Eichmann, um fulano banal, em quem não conseguia detetar nada de excecional, mas fora capaz de operacionalizar toda a logística do Holocausto. E ela previa que a verdadeira questão, a ser focalizada pela filosofia do século XXI seria precisamente a do Mal, aquela com que somos agora confrontados.
O filósofo Olivier Dhilly coloca duas possibilidades: ou se arrisca, de facto, uma explicação, caindo no risco dela servir de justificação ao injustificável ou opta-se por nada dizer, assumindo-se um fracasso intelectual.
Primo Levi, no seu livro «Se Isto é um Homem» considerava que não podemos, mas devemos compreender o que se passou num genocídio. O Mal constitui, pois, um verdadeiro desafio para o pensamento!
Perante imagens terríveis como a que acompanha este texto as perguntas óbvias são: como é que podemos calar a indignação, que elas nos suscitam? Como poderemos traduzi-la em palavras?
No romance de Dostoïevski «Os Irmãos Karamazov», Ivan fala ao seu irmão Aliocha e diz-lhe que no dia do Juízo Final, Deus tratará de reconciliar todos quantos ali compareceram, alcançando-se a Harmonia Universal. O que levará Albert Camus a considerar que, nesse mesmo momento, Ivan está a julgar Deus, pois este mostra-se complacente por exemplo com o sofrimento de uma criança, que só por si já nos deveria revoltar...
Na realidade o trágico nunca pode ser reconciliável!
A mesma ideia está patente no «Livro de Job» na Bíblia, quando este diz aos amigos não existir qualquer correlação entre o mal cometido e o mal sofrido. Na realidade o sofrimento (ou o mal sofrido) não é reconciliável no âmbito de uma conceção de harmonia.


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