(a propósito do documentário «Fantasmas de uma Guerra Civil» de Reinar H. Allerdt)
Procurando no youtube não encontrei quaisquer imagens referentes a este documentário rodado pelo alemão Reinar H. Allerdt em Baena, na província andaluza de Córdova, no ano de 1998. O mais próximo, que consegui foi este outro, da responsabilidade do presidente da câmara local e rodado no ano seguinte para “vender” a pequena vila como destino turístico de eleição, sobretudo para os que são fascinados pelas procissões da Semana Santa.
Ora, no filme de Allerdt, essas procissões surgiam como eixo demonstrativo da latência dos fantasmas suscitados pela Guerra Civil: dois grupos se distinguem nesse ritual religioso. Um deles constituído pelos principais latifundiários e burgueses da região, que se aparamentam luxuosamente e apostam na ostentação do seu estatuto social. O outro, mais numeroso, mas vestindo roupas menos vistosas, é o constituído pelos jornaleiros, que alternam entre o desemprego endémico e as poucas semanas anuais em que conseguem vender a força do seu trabalho na colheita da azeitona. Mas o que melhor caracteriza estas procissões - que se prolongam toda a semana a partir do Convento de São Francisco -, é o som tonitruante dos tambores: ambos os grupos rivalizam em quem consegue produzir um maior efeito sonoro, numa singular demonstração da luta de classes.
A origem dessa rivalidade social teve o seu momento culminante em finais de julho de 1936, quando o jornal franquista «El Defensor de Cordova» publicou um artigo a considerar a vila dominada por grupos marxistas, que já teriam matado padres, incendiado a igreja e transformado o Convento de S. Francisco numa prisão onde estariam encarcerados alguns dos principais proprietários das terras.
Era um facto: a República levara os trabalhadores agrícolas a revoltarem-se contra os latifundiários, que os tinham sujeitado a um regime de autêntica escravatura. Séculos de fome e de humilhações tinham justificado essas ações de justiça popular contra os exploradores e quem a eles estavam associados, como acontecia com os membros do clero.
Dias depois do artigo no jornal fascista, os mouros franquistas entraram na vila e, indiscriminadamente, começaram a fuzilar todos os suspeitos de ligações aos republicanos após julgamentos mais que sumários. O paseo (a praça central) da vila ficou de tal forma ensopado de sangue das dezenas, ou mesmo centenas de vítimas do massacre, que sessenta anos depois, a equipa de filmagens ainda encontrou quem se continuava a recusar a pisá-la.
Claro que, antes da chegada iminente dos franquistas, os republicanos, que mantinham 138 prisioneiros no Convento, também os mataram sumariamente.
Sessenta anos depois ainda continuava aguda a dissensão entre os defensores dos republicanos e dos franquistas. Os primeiros não podiam aceitar que as vítimas do campo contrário merecessem uma placa elegíaca com o nome de cada um, enquanto os que tinham sido massacrados pelos franquistas continuassem anónimos na vala comum de uma zona mais afastada do cemitério local.
O presidente da câmara socialista procurava conciliar as posições extremadas de uns e de outros, mas os fantasmas da guerra ainda continuavam a existir na forma como os mais pobres da vila encaravam os latifundiários, não só recordando como eles tinham ainda agravado o seu regime de exploração nos anos posteriores à Guerra, em que a vingança se mediu por muita fome e muito medo.
Mesmo à beira do século XXI ainda muitos velhos temeram falar para o filme com medo de verem as suas reformas (já conquistadas depois de implementada a democracia!) retiradas ou alguns mais jovens por temerem pelos seus empregos.
É certo que, desde então, têm ocorrido terríveis morticínios tão graves ou mais graves do que os perpetrados na Espanha de há quase oitenta anos. Mas esses ficaram registados como os anunciadores de uma nova fase civilizacional em que a luta de classes se agudizou e suscitou todos os crimes contra a Humanidade, que o medo de uma sociedade mais justa e igualitária passou a estimular nos que se tinham habituado a explorar sem o mínimo de escrúpulos...
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