Embora tenha sido assassinado em fevereiro de 1965, só na Primavera chegou ao meu conhecimento a notícia da morte de Humberto Delgado. Tinha nove anos, vivia num primeiro andar em frente à igreja do Monte da Caparica e fazia sol lá fora. Essa é a memória que guardo do episódio: como é que um dia tão bonito podia conjugar-se com algo sentido como motivo de inexplicável tristeza?
E não tenho a certeza de como isso se soube, embora suspeite ter-se tratado de notícia de rodapé nas páginas interiores do «Diário de Notícias», que era o jornal lido lá em casa.
Dentro das quatro paredes ia começando a suspeitar de que a adesão ao regime, que a televisão não se cansava de incensar, não era aquela que se poderia esperar de quem emitia doses contínuas de propaganda. O que vigorava era o medo, era o dizer-se a meia voz para se ter cuidado com o que se dizia, porque as «paredes têm ouvidos«. E provavelmente tinham, porque nunca se esclareceria - nem mesmo depois do 25 de abril - se um tio, a viver nas traseiras, era ou não informador da Pide.
Das suspeitas não se livrava até por passar os dias, indolente, a polir as cadeiras do café do regedor, que esse, obviamente, não suscitava dúvidas quanto à sua filiação política. E por certo numa aldeia fronteira a Lisboa, onde chegavam sucessivas levas de alentejanos, que abandonavam os campos para se virem proletarizar na grande cidade, a polícia política não deixaria de a tomar como um dos espaços eleitos da sua atenção.
Vem tudo isto a propósito do filme rodado por Lauro António a propósito do ano de 1958, quando Humberto Delgado representou uma enorme esperança de transformação da sociedade portuguesa, galvanizando massas, vencendo as eleições e sendo depois sujeito à repressão, que o haveria de conduzir à armadilha de Badajoz.
Ao evocar esse ano o realizador faz-nos um «luk et da treila» do seu passado, quando estava então no liceu, e ele próprio a encetar o seu caminho de irreverente contestação do regime, sobretudo a partir da leitura de um jornal da sua terra, Portalegre, cujo diretor ia procurando contar a realidade da forma possível face aos constrangimentos da censura.
Mas o que o filme «Humberto Delgado: Obviamente Demito-o!» revela, através de múltiplos testemunhos dos que privaram com o general (Iva Delgado, Mário Soares, Maria Barroso, entre outros) ou da sua ação fizeram uma leitura histórica à esquerda (Fernando Rosas, Irene Pimentel, Luís Farinha) ou à direita (Adriano Moreira, Nogueira Pinto) é que o regime abanou seriamente nessa altura.
Marcelo Rebelo de Sousa, com os seus atávicos exageros, até diz que a ditadura acabou nesse ano, como se os dezasseis seguintes tivessem sido um passeio para os que continuaram a ser presos, agredidos ou censurados pelos esbirros do regime, mas Salazar terá adivinhado acelerada a condenação histórica que provavelmente já julgaria inevitável.
Para além da curiosidade da frase mais conhecida de Humberto Delgado, proferida no Café Chave d’Ouro, ter sido invertida (a verdadeira expressão foi «demito-o obviamente!) fica, sobretudo, a noção da injustiça cometida contra os portugueses em 1974, quando muitos dos que falsearam os resultados para dar Américo Thomaz como vencedor, ainda estavam vivos.
O roubo que, então, praticaram ficou impune e muitos até terão muito provavelmente singrado nos partidos políticos da jovem democracia. Mas se até os pides e os legionários escaparam ao justo castigo como nos poderemos admirar?
Mas sabê-los apenas derrotados moralmente pela História é fraco consolo para esse tal medo, que vigorava e sustentou o regime até os capitães de Abril o derrubar.
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