segunda-feira, 29 de abril de 2013

LIVRO: «Um Escritor Confessa-se» de Aquilino Ribeiro (6)


Daqui a menos de um mês comemoram-se cinquenta anos sobre o desaparecimento do grande mestre, que foi Aquilino Ribeiro.
Na sequência de cinco textos anteriores, aqui no blogue, vamos prosseguir a abordagem dos seus anos de juventude recorrendo ao seu livro de memórias «Um Escritor Confessa-se», que havíamos deixado, quando, com dezanove anos, ele se sentia cada vez menos vocacionado para a vida religiosa tal qual a vinha a preparar no Seminário de Beja:
Que ando eu aqui a fazer? — surgia ao meu espírito ao acordar altas horas da noite, quando vêm cometer-nos os demónios azedos da existência, porque adormeceram os silfos bons e descuidosos que agitam asas à nossa volta nada mais que para erguer brisas prazenteiras e misericordiosas, com pena de nós em estado febril. E na lousa escura da noite fosforejavam estas palavras candentes: — Mas que há-de ser de ti?
E ia-me abandonando à torva torrente dos dias, ao passo que apelava todas as faculdades da alma à conformação. Mas a cada passo, porque eu não era hipócrita nem dobrava a cerviz até onde a miséria e estupidez humana entendem que devemos submeter-nos à autoridade, estalavam os conflitos debaixo dos meus pés. (pág. 101)
Estamos a basear-nos na edição da Bertrand em 1974, embora o livro tivesse sido escrito em 1960.  E elas são bem reveladoras do estilo do escritor, com um vocabulário riquíssimo e uma fluidez na descrição dos acontecimentos, que tornam a sua leitura muito agradável.
Mas chegamos, pouco depois, ao momento da rutura com a instituição: um pequeno episódio, porventura até menos gravoso do que outros anteriores, que levaram os responsáveis pelo Seminário a pretenderem castigar o cada vez mais revoltado Aquilino. E ele decide rescindir de vez o vínculo com a cada vez mais odiosa prisão em que se sentia coartado.
Por natureza o carácter fizera-o sociável por natureza pelo que não foi difícil transformar essa decisão de rebeldia num gesto logo acarinhado por quantos se iam imbuíndo dos valores republicanos, que não tardariam e impôr-se à cada vez mais decadente monarquia. Na revolta do jovem seminarista, muitos bejenses viram o sintoma de um virar de página em relação a um tipo de organização social em torno de instituições cada vez mais anacrónicas. E quiseram a ele associar-se numa festa de despedida bastante animada:
Os padres não me chamaram a contas, porque pretendessem fazê-las com meu pai, ou as considerassem feitas. Tinha-lhes sido enviada a importância do trimestre naqueles mesmos dias, de modo que não sei se a diferença, que excedia de mais de três vezes o meu débito, foi restituída ou se deve lançar-se ao registo, tão a carácter desta feita, das almas que caem ao inferno.
Despedi-me para nunca mais.
Quando voltei ao hotel, o Mira havia passado palavra e tinha à espera meio mundo, pequenos funcionários públicos, professores do Liceu, empregados do comércio, em geral rapazes da minha idade. Moveria a uns a curiosidade, outros o interesse ou simpatia humana em conhecer o rebelde que lançara ao mar a canga da servilidade milenária. Outros teriam em mente prestar-me o seu apoio moral, pois que a vaga republicana e de ideias novas alastrava impetuosamente de Norte a Sul do País. Confraternizámos e discorremos acerca deste mundo e do outro a perder de vista até tarde. (pág. 113)

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