No próximo mês passam cinquenta anos sobre a morte de Aquilino Ribeiro, que ocorreu em 27 de maio de 1963. Razão bastante para revisitarmos a sua biografia com a ajuda da autobiografia «Um Escritor Confessa-se» de que se segue aqui a terceira abordagem.
No verão de 1902 Aquilino Ribeiro está quase a fazer dezassete anos, quando vai sentindo cada vez mais condicionada a resistência à pressão dos pais para que faça carreira na Igreja.
Nos campos em torno de Moimenta da Beira existem tantas razões para evitar os rigores do internato - raparigas vistosas, a caça tão do seu agrado, as partidas com os amigos - mas a falta de dinheiro nos bolsos convence-o de não ter outra alternativa. Ainda assim, quando trata da escolha do seminário aonde se acolher, opta pelo que lhe dizem menos rigoroso na disciplina: O Seminário de Beja, dir-se-ia, conservava as velhas prerrogativas moçárabes, mercê das quais os bispos sagravam um diácono, desde que sabia o símbolo dos apóstolos e quantas eram as pessoas da Santíssima Trindade, em menos tempo do que se planta um castanheiro e deita castanhas dos ouriços. A disciplina era branda e não se esfolavam os joelhos a rezar. Vestia-se de preto, mas andaina comum, e nunca se saía à praça em formaura como os soldados, circunstância da minha particular embirração pelo que traduz de grei, grex, rebanho, entre ajudas e maiorais. Certo, certo, sobretudo, era emborcar-se a ciência tomística e canónica sem grande queimação de pestanas. (pág. 48)
Para quem não estava particularmente vocacionado para o serviço do Senhor, aquela opção parecia-lhe prometedora. A rebeldia ia-lhe na alma e só o desconhecimento quanto ao que deveria fazer no futuro o obrigava a acomodar-se áquela momentânea alternativa: Por isso era ali o refúgio dos rebeldes, dos cábulas e daqueles que encaravam o sacerdócio como uma profissão igual à de mestre-escola ou de veterinário. Beja tinha fama de diocese passa-culpas, perto de semipagã, e não havia padre colado pelas freguesias que não tivesse ama em casa, às vezes filha de lavrador e a melhor borrega da terra. No Alentejo não havia respeito especial, mas não menos repugnância totémica, que era quase estigma nas províncias do Norte, pelo menos sempre caso escuso, pelo tonsurado. O compadre prior era um homem como os mais. Podia sentar-se aos bródios do «monte» e comer à tripa-forra que ninguém lhe levava a mal. (pg. 48)
A expectativa de um futuro diferente ainda não lhe surge quando visita a capital pela primeira vez nessa longa viagem entre a paisagem beirã e as planícies alentejanas, mas a novidade das águas do rio deixam-se num êxtase indizível. Abrindo-se-lhe horizontes diferentes de tudo quanto até então conhecera, a clausura do seminário de Beja só tenderá a revelar-se-lhe mais insuportável: O nosso cicerone conduziu-nos mais tarde ao Terreiro do Paço e daí, sim, pude admirar a maravilhosa aguarela marinha do rio, com a dilatada planura glauca, a espuma esflocada das aldeias ribeirinhas, depois colina e bosque, com a serra da Arrábida, duma roxidão de ametista, a barrar a linha do horizonte. As pálpebras batiam feridas de deslumbramento e o hausto da maresia empolava-me o peito, projectando-me para fora do meu ser de serrano. (pág, 54)
Em outubro de 1902, ao viajar para sul, ele ainda não adivinha que irá ao encontro de uma parca alimentação suscitada pela avareza dos irmãos Ançâ - um vice-reitor e outro prefeito do seminário – que defraudam as contas a apresentar ao bispo a quem enviam relatórios com refeições bem mais lautas do que as oferecidas aos futuros padres, convencidos a viverem frequentes jejuns.
Embarcámos de manhã cedo para o Barreiro, testa do Caminho de Ferro de Sul e Sueste, na ponte do Terreiro do Paço, em frente do Pavilhão da Marinha. Uma vez em cima das águas, eu, que nunca vira o mar, que nunca vira navios, por efeito da transmissão sensorial das gerações, era como se voltasse a encontrar coisas vistas e triviais. 0 que o meu espírito agora fazia, dir- -se-ia, era rectificar. E lá fomos num vagão sujo de terceira classe, tum-tum, tum-tum, através da planície transtagana sem fim. (pág. 55)
(Edição da Livraria Bertrand, 1974)
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