domingo, 30 de março de 2014

FILME: «Alphaville» de Jean Luc Godard (1965)

Entramos numa época posterior aos anos 60, quando as autoridades dos “países exteriores” enviam o seu mais talentoso agente, Lemmy Caution,  para uma missão em Alphaville, cidade afastada da Terra alguns anos-luz.
O objetivo residirá em neutralizar os professor von Braun, o déspota para quem os sentimentos humanos são prescindíveis e o Alpha 60, o gigantesco computador por ele inventado e que tudo controla. Trata-se, pois, de destruir o monstro e libertar todos os “que choram”.
Em 1965 Godard contratualizara com a Columbia a realização de dois filmes por vinte milhões de dólares, que viriam a intitular-se «Alphaville» e «Pierrot le Fou». O primeiro a preto e branco, o segundo a cores, mas ambos seriam verdadeiras obras-primas dentro da riquíssima filmografia do realizador.
O tema de «Alphaville» é o de criar um universo de ficção científica, mas em que a poesia fosse o verdadeiro fundamento da sobrevivência.
Logo à partida ele tinha pela frente o desafio de representar uma cidade futurista. Ora a recém-inaugurada Maison de la Radio, com projeto de Henry Bernard, estava mesmo a jeito para corresponder ao espaço onde dominaria um ditador insensível (Leonard von Braun, inventor do “raio da morte”) e essa máquina destinada a aspirar e destruir os últimos vestígios de humanidade.
E como se caracterizaria o detetive? Sempre com um copo de álcool na mão ou um cigarro na boca, e pronto para as lutas corpo-a-corpo. Quanto ao nome, valeria por si como todo um programa: Lemmy Caution.
Temos, pois, todos os elementos inerentes ao filme policial, mas depressa somos surpreendidos pelo lado paródico em que Godard aposta, sobretudo quando entra em cena a personagem de Natacha von Braun para fazer de Lauren Bacall de serviço.
Os olhos da bela Anna Karina fragilizam o protagonista, que logo altera o objetivo principal da missão: claro que neutralizará Van Braun, claro que destruirá o Alpha 60, mas interessar-lhe-á, sobretudo, regressar a casa com Natasha na bagagem.
Como acontecia quase sempre no período em que viveu com Anna Karina e ia transferindo para os filmes (“Une femme est une femme”, “Une femme mariée” ou “La Chinoise”) os sucessivos estados de alma, que ela lhe suscitavam, Godard oferece à mulher (que ama) o papel de motor da dinâmica da história. Este é o filme em que Karina deplora o desaparecimento das seus palavras preferidas, crime suficientemente odioso para impulsionar a ação justiceira de Caution.
Mas será possível agir no Verbo sem se ser propriamente deus? O Alpha 60 consegue-o e impõe a lógica numa sociedade «técnica», que encara a linguagem como um dado obrigatoriamente colável ao real.
O Estado é totalitário, porque resulta dum cálculo, de um resultado «único, inquietantemente único» como o reconhece a própria máquina.
Alphaville tornara-se na ditadura da expressão, o local onde se liquidam todos os dissidentes, que tenham agido de «forma ilógica». Nos cursos do Alpha 60 utilizam-se certas palavras mais ambíguas (vagas, ausência, nostalgia), mas exclui-se totalmente «apaixonado» porque tudo tem um sentido único.
A antecipação de Godard faz do sinal uma intermitência que pode interferir plenamente com a expressão humana quando o significado está ausente; os spots ilustram a autoridade superior que regula as trajetórias individuais. Godard usa o sinal como uma linguagem minimal para sugerir o movimento, quer intelectual, quer físico.
Como na maioria dos filmes de Godard, «Alphaville» remete para muitas citações literárias: Jorge Luís Borges é referido abundantemente a propósito do tempo, o «1984» de Orwell serve de bitola ao ambiente totalitário e Bergson, Nietzsche ou Pascal entram em cena, quando se trata de filosofia. E, quando Lemmy Caution entra num táxi e diz ao motorista, que lhe pergunta se quer ir pelo lado da cidade onde faz dia, ou pelo outro onde é noite, é Céline quem se perfila: "Ça m'est égal, de toute façon, je "voyage au bout de la nuit"."
Mas, para além do universo do filme negro norte-americano, Godard não perde a oportunidade de homenagear Murnau, já que o verdadeiro nome do professor von Braun seria Nosferatu. Que pena não ter sido Roland Barthes a interpretar esse papel, tal qual o desejara o realizador...



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