No primeiro conto («A Metametamorfose»)do seu livro mais recente, Rui Zink põe o mais cínico dos dois caixeiros-viajantes hospedados em casa da família Samsa a dizer ao senhorio:
“- Sim, sim, senhor Samsa. Mas nós lidamos com o que acontece mesmo, a realidade, a realidadezinha, não com o que dizem telegramas do estrangeiro. Andaram a viver acima das vossas possibilidadezinhas e agora … é altura de pagar a factura.”
Muito embora aparente ser uma revisita do autor ao célebre romance de Kafka, imaginando a deceção de Gregor Samsa em acordar trivialmente humano em vez de transformado em barata ou escaravelho, o conto de Zink é um exemplo eloquente de como se pode satirizar a realidade mediante o recurso a metáforas inteligentes e plenas de sentido.
Se virmos os caixeiros-viajantes como a personificação dos senhores da troika, os telegramas do estrangeiro como falaciosos anúncios de sucesso vindos de Bruxelas e Gregor enquanto país comum incapaz de se transformar em algo de excecional por muito que o deseje, temos um belo retrato do pesadelo em que estamos mergulhados. E em que, ainda por cima, somos instados a viver no mesmo complexo de culpa do próprio protagonista, que não vê como se livrar da acusação mais ou menos explícita de se tratar de um preguiçoso…
Eis, pois, como a literatura pode constituir uma útil ferramenta para não nos deixarmos enlear pelos cantos de sereia dos que continuam a querer forçar-nos a ser o que não somos!
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