terça-feira, 11 de março de 2014

FILME: «Dolls» de Takeshi Kitano (2002)

Após ter prometido casamento a outra rapariga, um jovem prepara-se para desposar a filha do patrão.
Os amigos comentam, entre a admiração e a inveja, que ele está a transformar-se numa moderna Gata Borralheira. Mas ainda a cerimónia não começou e Matsumoto é avisado que Sawako, a rejeitada, tentara suicidar-se.
Precipita-se então para o hospital onde ela está em coma e implora-lhe o perdão. Mas é demasiado tarde: a escolha que fizera suscitara uma situação sem retorno. A mente de Sawako ausentara-se para um lugar inalcançável. Doravante, como forma de expiação, ele vagueia por montes e vales, sempre ligado por uma corda vermelha a essa mulher bela, mas mais morta do que viva. Troçados, respeitados ou temidos pelos que com eles se cruzam, escapam à lógica da razão e à própria vida.
Antes de assistirmos a essa história, “Dolls” iniciara-se com uma representação de teatro bunraku, cujo ritual é imutável há inúmeras gerações: um narrador desempenha todos os papéis e três artistas, dois dos quais mascarados, animam as marionetes de madeira, que interpretam a história.
No final dessa sequência, Kitano mostra essas marionetes - um homem e uma mulher - já libertos dos seus titereiros e quase vivas.
No final de “Dolls” ele filma Sawako e Matsumoto, os amantes malditos, esses “mendigos errantes”, como se se tratassem das personagens da peça de bunraku. Já estão vestidos com fatos sumptuosos e, concluída a sua busca irreal, encontram-se bruscamente face ao que tinham sido anteriormente. Quando Sawako sorria, Matsumoto a olhava e os amigos celebravam o seu noivado. Ele ainda não traíra, ela ainda não se refugiara na sua loucura: a felicidade ainda existia, possível e palpável…
Sawako e Matsumoto não são os únicos enigmas vivos deste filme de estranha beleza. Um yakuza velho e doente recorda-se bruscamente de uma jovem, a quem abandonara, há muito, muito tempo, para se dedicar a conquistar fortuna.
Quando a deixara ela prometera-lhe voltar todos os sábados ao mesmo banco de jardim onde se costumavam encontrar para partilharem o almoço por ela trazido.
Teria respeitado tal promessa ao longo de todos aqueles anos decorridos desde então? O velho yakuza descobre que sim...
Outra personagem singular é uma cantora pop, vítima de um acidente que lhe desfigura metade do rosto. Razão para ela decidir que doravante ninguém a voltará a ver. Mas o seu fã mais fiel vai utilizar um terrível estratagema para dela se aproximar: cega-se propositadamente para que ela aceda a esse desejo.
Kitano quererá demonstrar-nos que nenhum obstáculo é capaz de impedir um homem de alcançar os seus sonhos. Mesmo que, alimentada a esperança entre dois seres, ela os imite no quanto são efémeros e mortais.
Em “Dolls”, ao contrário da maioria dos outros filmes de Kitano, a violência nunca é exteriorizada. Não aparecerão corpos trespassados por balas e a representarem um estranho ballet. Quando surge um ajuste de contas a câmara chega com a batalha já concluída. Enquadra uma porta de elevador, que um cadáver impede de fechar.
Há um assassinato, mas Kitano limita-se a exibir o olhar surpreendido do que irá morrer no instante seguinte. E, no entanto, mesmo se não a vimos, a brutalidade está omnipresente. Na intriga do teatro de marionetes. Nas personagens cujos atos, mesmo insignificantes, fazem com que neles e nos outros se cavem abismos de dor e de desgosto. E a própria natureza, em vez de se revelar libertadora, enclausura-os com os seus campos de rosas vermelhas (só uma é branca em forma de desafio!), com as árvores cujas folhas parecem sangrar e com as florestas outonais esplêndidas.
Longe de se mostrar gratuita, a beleza omnipresente torna-se monstruosa. Uma prisão donde nunca se escapa.
«Dolls» revela em Kitano a condição de um moralista ainda mais sombrio do que se imaginava.



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