(a propósito do Documentário: «Como Construímos o Metro de Moscovo» de Xavier de Villetard)
Até os mais empedernidos anticomunistas reconhecem a beleza sumptuosa do metropolitano, que serve a cidade de Moscovo. Muito embora se lhe possa criticar uma estética algo kitsch a sua grandiosidade tende a conter uma apreciação mais exigente.
É igualmente surpresa para muitos, que ele constitua um dos melhores exemplos do que o período estalinista teve durante a existência da União Soviética: milhares de engenheiros e de proletários fizeram causa comum na tradução para a realidade dos sonhos imaginados por alguns escritores, que viam o futuro como um tempo de afirmação plena das mais idílicas utopias: igualdade e justiça para todos numa sociedade feita de edifícios vanguardistas e asséticos.
Vivia-se então o início da década de 30 e Moscovo vivia a efervescência de constituir a montra do que poderia vir a ser a sociedade comunista. Por isso mesmo a capital da União Soviética deveria simbolizar o triunfo socialista!
Obcecado pela construção desse mundo novo, José Estaline lança um projeto colossal destinado a transformar a cidade anacrónica herdada dos czares numa metrópole moderna e vanguardista, ao nível da imaginada pelas histórias de antecipação científica, então na moda. Por isso incumbiu Lazare Kaganovitch de imaginar como ela deveria ser.
Em tal projeto o metro ocupa um papel determinante: milhares de trabalhadores e de técnicos afluem de toda a União para abrirem os túneis da futura rede de transportes. Muitos deles sem nada saberem do ofício e aprendendo-o à medida que iam resolvendo os efeitos dos seus erros.
Defensor da cultura para todos, Máximo Gorki, recém chegado do exílio, propõe a criação do relato dessa epopeia por parte dos que o estavam a construir. Porque, segundo as suas palavras, seria o proletariado emancipado a assumir doravante a sua versão dos acontecimentos.
Assim, entre 1932 e 1935, é criada uma notável obra coletiva, que conta com o apoio dos mais brilhantes intelectuais da época como Boris Pilmiak, Lev Kassil, Valentin Kataïev ou Isaac Babel. Centenas de homens e de mulheres vão documentando o avanço dos trabalhos através de diários e de entrevistas, que vão dando conta do seu entusiasmo e desilusões, das condições difíceis em que trabalhavam ou das críticas aos que apenas se viam a desempenhar uma mera tarefa bem remunerada.
Recorrendo à leitura desses textos, Xavier Villetard associa-os a imagens de arquivo e a sequências sonoras que os podem complementar.
Vive-se um sonho a que as purgas, ocorridas entre 1936 e 1938, porão cobro. Mas, já desde o outono de 1934, Kaganovitch encoraja a denúncia dos “sabotadores” e de outros elementos “socialmente prejudiciais”. À medida que o regime aprofunda a sua paranoia policial, cada um vê-se sob suspeita de se tratar de um potencial inimigo.
A História do Metro moscovita ilustra a viragem política, que se verifica nessa mesma década. Aquela em que, depois de contar com o apoio incondicional dos principais intelectuais europeus, o regime soviético começa a conhecer os seus primeiros críticos.
Ao escolher o ângulo literário, este documentário impressionante revela uma faceta pouco conhecida do projeto soviético ao misturar as imagens do passado com as contemporâneas e ao relativizar o quadro apologético então lançado pela propaganda do regime.
Vuilletard não deixa de reconhecer o lado sublime de uma aventura arquitetónica ainda hoje tão admirada e de um documento literário de inegável interesse para compreender como não se esteve longe de criar algo de único e se o destruiu em função de uma progressiva criação de divergências quanto à forma de levar a teoria à prática. Algo que continua a ser uma lição desaprendida à esquerda: os principais inimigos deveriam estar à direita, mas invariavelmente são escolhidos entre aqueles que, numa fase da elaboração do sonho, chegaram a comungar das mesmas ideias...
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