Reflexão sobre o absurdo e a revolta, «Calígula» é uma peça de Albert Camus concluída em 1944, depois de ter dela criado uma versão menos politizada e amarga em 1939.
Partindo da leitura da «Vida dos Doze Césares» de Suetónio, Camus inicia a história no momento da morte de Drusila, que era a irmã e amante do protagonista. Altura em que este conclui que “os homens morrem e não são felizes”. Daí a ânsia demencial de experimentar a “paixão do impossível”, ou seja de alterar o curso das coisas.
Doravante Calígula irá recorrer ao seu poder absoluto para obrigar os que o rodeiam, e o servem, a viverem de acordo com a plena consciência de serem mortais. A morte passará a ser arbitrária e enquadrada no “julgamento geral” da humanidade:
“Preciso de culpados. E todos eles o são (…), juízes, testemunhas, réus. Todos à partida condenados”, anuncia no primeiro ato.
Os atos seguintes já ocorrem três anos depois quando o projeto do ditador está em curso: Calígula multiplica os insultos e as humilhações aos patrícios, ora parecendo adulá-los, ora escravizando-os, arruinando-os, ora até mandando matar-lhes os filhos.
Todos tremem perante o tirano, que distribui os papéis para o «processo», atribuindo-se a si o que caberia aos deuses. Mas não tarda a suspeitar da conspiração, que visará derrubá-lo, sem que decida opor-se-lhe. Porque acaba por compreender que a sua “liberdade não é a boa” e que “matar não é a solução”.
Calígula nunca chegará a conquistar a Lua, símbolo lírico do impossível, como o espelho é o do objetivo estético e moral que a subentende.
Ao postular que a verdade está em revoltar-se contra o destino, o seu erro foi o de negar os homens: não se pode destruir sem se destruir a si mesmo. Eis a razão porque Calígula semeia o deserto em seu redor e, fiel à sua lógica, faz tudo o que será necessário para virar contra si os que o acabarão por matar.
«Calígula» torna-se na história de um suicídio por interposta pessoa de quem se mostra infiel à humanidade devido à excessiva fidelidade a si mesmo.
Ele consentirá em morrer depois de ter compreendido que não é possível salvar-se ficando cingido a si mesmo, e não se pode ser livre contra todos os outros.
Ainda assim, mesmo quando está prestes a morrer, Calígula sempre negará isso à sua maneira: rirá, troçará e gritará nos derradeiros instantes: ”à História, Calígula! À História!”.
É nesse desenlace que a morte do tirano assumirá toda a dimensão irónica e, ao mesmo tempo, trágica.
A peça é, pois, muito mais do que um drama sangrento. Trata-se de uma meditação de inspiração nietzschiana sobre o sentido da vida, o niilismo do poder absoluto e sobre o efeito mortífero da linguagem quando os atos correspondem exatamente às palavras pronunciadas.
Já encontramos aqui refletidos a maioria dos temas que Camus desenvolverá na sua obra posterior: a inocência e a culpabilidade, a dificuldade em viver e a busca da felicidade, a solidão, a revolta e a exigência da lucidez perante o absurdo da morte.
A paixão que devora Calígula, a sucessão rápida de cenas, ora de farsa, ora de tragédia, de ironia, de emoção, dão-lhe um dinamismo tão inspirador quanto devastador.
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