segunda-feira, 8 de outubro de 2012

LIVRO: «Do Outro Lado do Sonho» de Ursula Le Guin


Nos tempos de aparente abastança, que começam a ficar remetidos para a História deixando-nos este futuro próximo inquietante, havia muita gente disposta a ver os sonhos na realidade. E foi assim que, durante algum tempo, mesmo sem recursos para tal, estratos pouco abonados consumiram a crédito as viagens, os eletrodomésticos e outros bens vislumbrados como concordantes com um estatuto social em que julgavam inserir-se.
As ideologias de direita conseguiram incrustar-se nas mentes dos mais desfavorecidos e erradicar os desejos de utopias igualitárias anteriormente neles presentes.
O livro de Ursula Le Guin, datado de 1971 e publicado pelas desaparecidas Edições 70, mostra os riscos de forçar a aplicação de visões politicamente corretas através de grandes engenharias demiúrgicas, redundando em resultados catastróficos.
Temos então um modesto funcionário de Portland, George Orr, a contas com pesadelos tão desconfortáveis, que começa a tomar doses cada vez maiores de estimulantes até ao dia em que abusa da já enorme dosagem e quase sucumbe: As suas pálpebras tinham sido consumidas, por isso não podia fechar os olhos, e a luz penetrava-lhe no cérebro, queimando. Não podia voltar a cabeça porque bocados de betão lhe impediam os movimentos, assim como as vigas de aço que saíam dos interiores lhe apertavam a cabeça como num torno. Quando estes desapareceram pôde mexer-se novamente; sentou-se. (pág.12)
Embora o médico que o salva não queira propriamente sujeitá-lo a grande punição, não lhe pode, porém, evitar problemas com a polícia: Mas não se preocupe, só com estas drogas não é acusado de crime, vai ser chamado à polícia e eles mandam-no para o hospital ou para uma consulta da especialidade para ser examinado e de lá enviam-no para um médico ou para um psiquiatra para fazer TTV... Tratamento Terapêutico Voluntário. (pág.14)
A primeira consulta com o psiquiatra a que se vê atribuído decorre pacificamente. Mas não tarda a constatar como os seus tratamentos baseados na hipnose começam a alterar a realidade circundante a um dimensão inesperada. Por exemplo, de repente, o problema da sobrepopulação mundial e da falta de mantimentos resolve-se com o súbito desaparecimento de biliões de pessoas. E, a princípio, ele até descobre vantagens nessa nova realidade: Nessa noite, pelo menos, dormiu profundamente e, se sonhou, foram sonhos leves. Só acordou perto da tarde de sábado. Foi até ao frigorífico e espreitou lá para dentro, ficando ali, por uns momentos, a contemplá-lo. Havia ali mais comida num frigorífico particular do que jamais vira em toda a sua vida. Na outra vida. Aquela que fora vivida com mais sete biliões, em que fosse qual fosse o tipo de comida, nunca chegava. Um ovo era o luxo do mês. (pág. 78)
Mas se se sente melhorar dos problemas anteriores, George começa a sentir problemas éticos com o projeto megalómano do dr. Haber a quem acusa de, mesmo sem o admitir, recorrer aos seus sonhos para modificar o mundo. Ainda que na melhor das intenções: A guerra aumentava no Próximo Oriente; Haber havia de acabar com ela. E também com os massacres em Africa. Porque Haber era um homem benevolente. Queria fazer um mundo melhor para todos. (pág.81)
Azar de George: dera com um psiquiatra também a contas com os seus próprios demónios interiores: Haber considerava-se um lobo solitário. Nunca quisera casar nem conviver com amigos, escolhera uma árdua carreira que era desempenhada durante o sono dos outros, sempre evitara qualquer tipo de relação. A sua vida sexual limitava-se a encontros ocasionais, pagos; umas vezes com mulheres, outras com rapazes; conhecia todos os bares, cinemas e saunas onde os podia encontrar. Obtinha o que queria e desligava-se imediatamente, antes que ele próprio ou a outra pessoa pudessem talvez desenvolver a relação. Prezava a sua independência, a sua liberdade. ´(pág. 109)
Doravante, cada tentativa de melhorar os problemas do planeta só os agrava: para acabar com a guerra, Orr sonha com uma invasão extraterrestre; para acabar com a doença, eutanasiam-se os que a contraem, etc.
Recorrendo a uma máquina cada vez mais eficiente na indução de orientações para os sonhos de George, Haber consegue causar efeitos a uma escala cada vez mais ambiciosa, mas o resultado final acaba por desviar-se significativamente do pretendido. Fazendo aproximar a humanidade de regimes cada vez mais totalitários e apocalíticos.
Mas, mesmo perante a evidência dessas devastadoras consequências Haber não quer desistir por muito que George resista, justificando-lhe os seus argumentos Que mal há em alterar as coisas? Já agora, gostava de saber se essa sua anulação, se esse equílibrio de personalidade não o levarão a uma atitude defensiva. O que eu quero é que se despreenda de si próprio e que tente analisar o seu ponto de vista do exterior, objectivamente. Tem medo de perder o seu equilíbrio. Mas a mudança não o desequilibra; a vida não é estática, apesar de tudo. É um processo. Não pára.
Intelectualmente você sabe isso, mas emocionalmente recusa. Nada permanece, não se pode banhar na mesma agua do rio duas vezes. A vida é... evolução... todo um universo de espaço tempo, de matéria energia... a própria existência... é essencialmente mudança.  (pág. 129)
Quando a realidade parece condenada a desaparecer e George perde tudo - até a relação afetiva entretanto surgida com a advogada contratada para o defender do abuso de Haber - ele decide acabar com a máquina em que era forçado a sonhar sob a sua orientação, despertando para um mundo desiquilibrado, mas resultante da conjunção dos atos e dos sonhos de todos em vez do resultante dos de um só.



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