quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

MÚSICA: As sombras na biografia de Charles Trenet

A minha entrada na música francesa, enquanto apreciador, deu-se logo pela porta grande: em finais dos anos 60, quando andavam a surgir praias por baixo das calçadas de Paris, comecei a ouvir Brel e Barbara, a que se viriam logo a seguir somar Léo Ferré, Brassens e Serge Reggiani.
De Charles Trenet só vim a saber da existência mais tarde, não sendo então difícil arquivá-lo juntamente com os que já eram demasiado velhos (Maurice Chevalier) ou o pareciam (Bécaud, Aznavour), mesmo andando pela idade dos que aprendera a admirar.
Ainda assim, «Je chante», «Que reste-t-il de nos amours» ou, sobretudo, «La Mer» fossem reconhecidamente belas canções, que me faziam abrir os ouvidos para esses sons.
Mas também foi por essa altura, que comecei a saber de uns zunzuns sobre o seu colaboracionismo durante a Ocupação e não me descansou propriamente a consagração para ele promovida por Mitterrand ou por Jack Lang, quando aquele chegou ao Eliseu.
O documentário de Karl Zéro e de Daisy d’Errata tem o interesse de esclarecer esse comprometimento vergonhoso de Trenet com os nazis, ao mesmo tempo que aproveita, igualmente, para encarar outra das sombras no seu currículo: a de pedófilo. Para tal recorre a muitas imagens de arquivo e aos testemunhos dos seus amigos e conhecidos.
A primeira contradição constatável em Trenet era a da sua imagem jovial, ligeira, fugaz, sonhadora, com a de uma outra realidade, que ele procurava iludir: a de uma personalidade atormentada por uma infância de enorme sofrimento, quando os pais se divorciaram e ele foi rejeitado pela mãe, que optara pela nova família em que se integrara e o deixara como interno num severo colégio religioso.
Paradoxalmente essa mãe egoísta foi idolatrada por Trenet, que acederia a tê-la como ditadora das suas opções de vida, quando foi viver com ele os seus últimos anos de vida.
Quando, um dia, ele pretendeu casar com uma bela rapariga por quem se sentia sinceramente atraído e lhe permitiria despistar a imagem de homossexualidade, que se lhe associava, foi essa mãe quem lhe proibiu o compromisso, mesmo já estando publicamente divulgado.
Terá sido como forma de escapar às suas próprias contradições, que Trenet se refugiou, sempre que possível, no mundo dos sonhos. Mesmo que fosse, de imediato, desperto para a dolorosa realidade.
Mas, curiosamente, ele atravessou todo o século XX a livrar-se, por elegância e desenvoltura, à justificação de tudo quanto ia sendo acusado: de ter composto hinos por encomenda de Vichy (mesmo para serem cantados por outros, que não ele), de se ter deslocado a Berlim para cantar perante os prisioneiros franceses ou de ter alimentado amizades mais que comprometedoras com quem colaborava orgulhosamente com os alemães. Ou mais tarde, quando um secretário, que despedira, o denuncia às autoridades como pedófilo, que o encarregava de encontrar garbosos adolescentes com quem iria para a cama.
Trenet nunca respondeu a tais acusações, sofrendo em silêncio e cantando sem descanso para calar os que lhe cortavam na casaca. E terá morrido, quando as polémicas se tinham diluído numa consagração merecida...


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