Não tenho vergonha de dizer que os meus filmes são o resultado da dor, do ódio, de um amor frustrado e impossível, da incoerência do subdesenvolvimento.
Glauber Rocha
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Nascido em 1938 em Vitória de Conquista, Glauber Rocha recebeu uma educação religiosa. Após três anos em Direito, torna-se jornalista cultural e revela um verdadeiro talento teórico.
Começando pela curta-metragem e depois pela produção, assina a primeira longa-metragem em 1962.
«Barravento» conta a história de um homem que tenta libertar os pescadores da sua aldeia de uma cega obediência à religião.
O filme circula pelos festivais internacionais de cinema e suscita admiração em Alberto Moravia.
Em 1964 «Deus e o Diabo na Terra do Sol» impõe Rocha como um cineasta de primeiro plano. Negligenciando ostensivamente a narração clássica, o cineasta alia a alegoria filosófica e o naturalismo estilístico.
No mesmo ano um golpe de Estado militar põe termo à efervescência libertária dos inícios dos anos 60.
«Deus e o Diabo na Terra do Sol» também assinala o primeiro aparecimento do personagem António das Mortes no seu cinema enquanto assassino a soldo dos latifundiários, virando-se contra eles no filme «António das Mortes» de 1969.
No entretanto, em 1967, Glauber Rocha apresenta em Génova o seu manifesto «Estética da Fome» no âmbito de um colóquio sobre o Terceiro Mundo. E, no mesmo ano, roda «Terra em Transe», pedra angular do “Cinema Novo”, esse jovem cinema brasileiro, que reivindica o estatuto do deserdado e do seu combate político.
Em 1969 Jean Luc Godard convida Glauber Rocha para o seu filme «Vento de Leste», que constituía uma reflexão sobre a tentação revolucionária.
No seio da sua geração Glauber distingue-se dos seus camaradas de luta, Nelson Pereira dos Santos («Seca», 1963) ou Ruy Guerra («Os Fuzis», 1965) pelo seu gosto por um barroco vistoso.
Ós anos 70 levá-lo-ão a novas aventuras. Uma delas africana, com a rodagem de «O Leão das Sete Cabeças» no Congo, em que procede a uma reflexão ambiciosa sobre a linguagem estética e política do cinema tendo Brecht e Godard como inspiradores. Outra é política: regressado em 1978 após cinco anos de exílio, candidata-se a governador do Estado da Baía. A derrota deixa-o prostrado.
No Festival de Veneza, em 1980, «A Idade da Terra» é mal acolhido e ele insulta Louis Malle (que ganha o Leão de Ouro com «Atlantic City»).
Em 1981, Glauber Rocha morre aos 42 anos, deixando-nos uma dezena de longas-metragens e uma enorme quantidade de artigos e livros.
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«António das Mortes» é um filme espantoso na sua inspiração, liberdade, riqueza e lirismo. Esta história mistura o sublime com o trágico, numa associação entre drama e ópera.
Espetáculo total, representação, dramatização voluntariamente e justamente explosiva da realidade e dos mitos do Brasil, «António das Mortes» é a sequela natural - e até a síntese - do «Deus e o Diabo na Terra do Sol» e de «A Terra em Transe».
Desta feita a reflexão de Glauber é feita a partir de uma fábula ligada à tradição e a uma cultura popular, que permitia explorar o estado de então da América latina.
Célebre “matador de cangaceiros”, António das Mortes é contratado por um coronel para reprimir a revolta dos Beatos, camponeses pobres oprimidos do serão e cujo misticismo primitivo é encarnado por uma mulher, a “Santa”, que os acompanha.
Em torno do coronel cego, sempre guiado pelo seu lacaio Batista, há a mulher, um padre, um delegado da polícia e um professor, a quem o desencanto e cobardia conduziram ao alcoolismo.
Entre os Beatos, figura um líder particularmente fogoso, Coirana, que pretende conduzir a revolta local para dar continuidade ao heróico combate do cangaceiro Lampião, assassinado há já uns bons anos.
António das Mortes deverá matar Coirana como já o fizera com o Lampião. O que concretizará após um duelo apresentado como um bailado ritmado pelo bater das mãos e pelos cânticos do povo, chamado a desempenhar o papel do coro na tragédia grega. Segundo os Beatos, no dia em que “Coirana vier acabará a obediência e, se morrer, o resto do povo morrerá de miséria.”
Depois de matar o efémero cangaceiro, António das Mortes decide juntar-se aos seus seguidores impressionado pela Santa, que lhe lembra outra rapariga encontrada em tempos e cuja morte muito o impressionara. E essa viragem significará o fim do poder do Coronel…
Esse solitário ao serviço do poder e de uma causa perdida, deixará de aceitar as injustiças, as humilhações, os sofrimentos, a corrupção e a crueldade. Daí que entre em rutura com a repressão do coronel e transporte o corpo de Coirana - cujos braços em cruz numa árvore evoca Cristo - para o local onde os camponeses foram, entretanto, massacrados. Para os vingar.
Concluída essa missão regressa à estrada cruzando-se com os sinais da “civilização”: camiões, carros, autocarros.
Para trás deixa os únicos sobreviventes dos Beatos, um Negro e a Santa, montados num cavalo cujas rédeas vão na mão de um padre armado de uma espingarda.
Voltando, então, ao outro título por que ficou conhecido o filme - «O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro» - temos a evocação do mito de São Jorge, muito popular no Brasil.
Aliando o cinema de ação e a estilização. O filme comove e cativa pela sua beleza e força. E se a cor tem aqui tanta importância, é por toda ela possuir um significado preciso. Existe a pureza do branco da Santa em contraste com o negro da tragédia e o vermelho da violência. Um vermelho para o sangue, que aqui é particularmente credível enquanto representação da anarquia, da selvajaria, mas também do desejo de mudança social, política e histórica. Porque «António das Mortes» acaba por constituir um cântico de esperança e de liberdade para o povo.
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