sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

CINEMA: quando no amor, o inferno são mesmo os outros!

(a propósito de «A Hora do Lobo» de Ingmar Bergman)
O ciclo de cinema dedicado a Ingmar Bergman, atualmente em curso no cinema Nimas, está a conhecer um enorme sucesso, comprovativo do interesse de gente em número suficiente para justificar programações mais ambiciosas.
Com o desaparecimento do King esse tipo de oferta ficou mais reduzida, dependente das escolhas aleatórias dos que parecem manter ecrãs de cinema para justificarem o bem mais lucrativo negócio das pipocas e da coca-cola
Não integrando o ciclo no cinema de Paulo Branco, «A Hora do Lobo» foi exibida na Cinemateca e possibilitou o encontro com uma obra bastante interessante, embora não se conte entre as mais conhecidas do realizador.
Datado de 1968, é uma espécie de gémeo do famoso «Persona», que Bergman rodara dois anos antes. Mas onde neste último surgia a empatia de duas personagens (a enfermeira Alma e a atriz Elizabeth Vogler), que se traduzia na possibilidade de cura da que chegara ao hospital psiquiátrico com uma disfuncionalidade, em «A Hora do Lobo» sucede o contrário: a progressiva rutura do casal, quando os fantasmas de Johan o vão afastando da mulher amada.
Não é, obviamente, uma coincidência a existência de uma Alma e  de uma Vogler neste filme depressa transitado do plano real para o da ténue fronteira entre a vigília e o sonho.
Mas, antes mesmo do genérico, já estamos confrontados com o desiderato do que iremos ver: o pintor Johan desaparecera e Alma, a mulher, dele grávida, entrega ao realizador os diários, que ajudam a explicar o sucedido. Durante alguns minutos ela enfrenta a câmara e dá conta de como, após sete anos de felicidade, eles haviam ali aportado à ilha Bältrum para viverem mais plenamente a sua relação.
Era não contar com a hora do lobo: é a hora em que a noite toma o lugar do dia. É a hora em que a maior parte dos moribundos se apagam, quando o sono é mais profundo e os pesadelos mais complexos. É a hora onde os que não conseguem adormecer, enfrentam as suas mais violentas angústias e em que os fantasmas e os demónios são mais fortes.
Johan começa a ceder à esquizofrenia vendo fantasmas, que o atraem ao castelo. Lindhorst, o anfitrião, dirige aí a sua corte de vampiros, que se irão deleitar com a lenta degradação da relação amorosa entre o casal. Para tal recorrem ao ciúme, razão para contarem com o contributo de Veronica Vogler, a antiga amante de Johan, que não hesita em voltar a atraí-lo a si.
Enquanto ela representa a luxúria e a morte, Alma personifica o contrário: o lado diurno, a vida que se exibe na sua barriga de grávida. E por isso mesmo ela é quem menos se conforma com a facilidade com que Johan vai-se deixando conduzir pela sua doença: crê que, se fizer seus os sonhos do homem amado, conseguirá retê-lo junto de si.

Fútil ilusão, porque os inimigos são demasiado poderosos: não sucede o mesmo no nosso quotidiano, quando o enamoramento dos amantes depressa se vê ameaçado pelo caráter invasivo dos que os rodeiam?
O filme de Bergman revela-se, pois, muito rico em pistas para o seu cabal entendimento. Até porque também pode ser visto á luz dos impasses criativos de quem faz da arte o seu modo de vida. Como o próprio Bergman, que andou décadas a contas com a catarse dos seus traumas infantis (e aqui eles surgem amiúde referenciados!) e sempre verteu para os filmes as dúvidas e ansiedades que a idade apenas foi apurando.
Não sendo um filme fácil, «A Hora do Lobo» constitui um desafio estimulante para quem quer ver nos filmes mais do que o seu lado de entretenimento!


Sem comentários:

Enviar um comentário