Em 1951, quando Akira Kurosawa apresenta «Rashomon» nos ecrãs europeus e norte-americanos, ainda estava fresca a memória da Segunda Guerra Mundial. Por isso mesmo a cena inicial do filme, quando se vê um cenário de ruínas batidas pela chuva e um personagem a dizer «Não entendo… não entendo nada!» era inevitável pensar no que se tinha transformado o antigo império nipónico depois de derrotado por bombardeamentos intensos e por dois engenhos atómicos.
E, no entanto, as histórias de Ryonosuke Akutagawa, em que Kurosawa se baseou, tinham sido escritas antes da Segunda Guerra, só podendo ser entendidas como precursoras dessa catástrofe.
Ainda nessas cenas iniciais o bonzo, que está em vias de perder a fé na espécie humana, comenta: «Guerras, terramotos, ventos, incêndio, escassez, a praga! Ano após ano, não têm sucedido senão desastres!»
Mas depressa se passa para a história em si, aquela que o sacerdote e um lenhador contam a um plebeu, que com eles se refugiara por baixo do pórtico de Rashomon, ou seja da Porta do Demónio.
Entramos então numa sucessão de flash backs, que chegam a ocorrer dentro deles mesmos, para se chegar ao momento em que o bandido Tajomoru consegue atrair um samurai a uma armadilha, prendendo-o a uma das árvores da floresta, e volta ao trilho de que o desviara para lhe violar a mulher. O resultado fora trágico: o samurai acabara assassinado!
Mas aquela que parecia uma versão consistente do sucedido começa a ser posta em causa consoante se sucedem as versões do bandido, da mulher estrupada, do samurai assassinado (que fala através de uma sacerdotisa em transe) e do lenhador.
Afinal o que terá realmente sucedido? O samurai terá morrido crapulosamente ou num duelo com o bandido que lhe violara a mulher? Ou, em alternativa ter-se-á suicidado por não poder tolerar a vergonha?
E a mulher terá oposto resistência ao violador ou ter-se-lhe-á entregado de livre vontade, incitando-o depois a matar o marido?
Mas se a confusão era muita pode-se ainda acrescentar mais uma acha para a fogueira: qual o papel do lenhador? Teria apenas dado com o cadáver do samurai ou o desaparecimento da adaga que o matara fora por ele surripiada, antes ou depois desse golpe mortal? Ou terá o samurai morrido à conta da espada do bandido?
Muda-se o testemunho, e é toda a história que se altera! O que demonstra a dificuldade em se conseguir chegar a uma conclusão verdadeiramente fiável do sucedido!
Bem pode o sacerdote perder a fé na bondade humana, que Kurosawa irá acabar o filme dando-lhe razões para alimentar o seu anterior idealismo: ao encontrarem um bebé abandonado na floresta o lenhador decide levá-lo para sua casa, já que, com tantos filhos, uma boca a mais nenhuma diferença faria. Ora ele estava a ser já considerado nesse momento como um dos potenciais vilões da história, sendo inesperada essa prova de humanidade!
Quer tivesse ou não a intenção de estabelecer leituras subliminares do que se vivia então no seu país, Kurosawa consegue criar uma obra-prima ao transformar a Kyoto do século XI no cenário propício a uma tragédia grega mesclada com a estética do teatro kabuki.
Depois de uma estreia pouco entusiástica no seu país, Kurosawa ver-se-ia recompensado, quer na Europa - aonde seria premiado com o Leão de Ouro do Festival de Veneza - quer nos EUA onde a Academia de Hollywood o recompensaria com o Óscar para o melhor filme estrangeiro desse ano.
A sua aceitação internacional nunca mais esmoreceria
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