segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

Filme: «REALITY» de Matteo Garrone




No final do século XIX e na primeira metade do século XX os intelectuais mais apostados na concretização de uma sociedade sem classes, viam-na possível a partir de dois eixos evolutivos: por um lado a tendência crescente do capitalismo para cumprir a lógica marxista de minguar o número dos que tudo têm em desfavor de um número progressivamente avassalador dos reduzidos à pobreza então predispostos para se revoltarem; mas, por outro, estes últimos, através das sociedades operárias e de outras organizações similares iriam aumentar entretanto a sua cultura de forma a compreenderem devidamente o que estaria em jogo no momento da revolução emancipadora.
Daí que os países que tentaram, e falharam, o projeto comunista sempre tenham conferido uma grande importância às letras, às artes e à musica clássica, ao partirem do pressuposto de que massificado o acesso a ideias e a estéticas mais exigentes, se criariam homens novos com as qualidades necessárias para liderarem uma sociedade capaz de se ir aproximando progressivamente da utopia igualitária.
Teria sido assim se do outro lado da trincheira não existissem igualmente ideólogos inteligentes apostados em frustrar esse percurso imparável para ao amanhãs que cantam. E uma das primeiras opções que se lhes surgiu foi a da exploração das fraquezas humanas, de cuja existência os utopistas nem equacionaram colocar na equação: a ambição, a ganância, a inveja, a intriga, a aversão a gastar as meninges…
Como dizia Almada Negreiros dos seus compatriotas: Povo completo será aquele que tiver reunido no seu máximo todas as qualidades e todos os defeitos. Coragem portugueses, só vos faltam as qualidades.
Os defeitos foram explorados até à exaustão pelas televisões de que o grande capital se apossou nos processos de privatização dos antigos canais públicos e transformou numa janela aberta para o que de pior poderia atrair o pior lado dos espectadores: o voyeurismo.
Por um lado criou-se a apetência por um novo riquismo, quase sempre de tenebroso gosto kitsch, que leva as famílias a endividarem-se para festas de casamento como a que inicia o filme: com roupas espalhafatosas, em cenários da Disneylândia dos pobres e com muito recurso a fotografias e filmes demonstrativos de se ter vivido a experiência.
Que o animador da festa seja um obscuro participante no concurso Big Brother, recebido como se de um deus se tratasse, diz tudo da substituição dos reconhecidos heróis de outrora por estes personagens de pacotilha, que ganham protagonismo pelo duvidoso mérito de se terem apalhaçado perante as grandes audiências televisivas.
Garrone consegue um efeito perturbador quando, saídos do falso glamour da festa do casamento, os personagens quase tão feios, porcos e maus como os do memorável filme de Ettore Scola, regressam às suas casas decrépitas, para trocarem as roupas dos dias de festa pelos trapos de todos os outros.
Mas, por outro lado, a possibilidade de se fazer parte desse mesmo sonho fútil, acaba por ser o grande tema do filme, porque Luciano, o peixeiro, que garante a sobrevivência da família graças a expedientes de legalidade duvidosa, irá entrar num delírio irreversível sempre a acreditar na possibilidade de vir a ser selecionado para a próxima série do concurso. Daí que venda o seu lugar no mercado e se incompatibilize com a família, esperançado na mudança definitiva das suas dificuldades quotidianas.
Se uns apostam no euromilhões ou no totoloto, vivendo o sonho de se tornarem ricos de um dia para o outro, Luciano crê piamente na capacidade redentora do concurso televisivo. E essa é uma alienação incurável, destruidora… como o é para os milhões de lucianos, que desejosos de se salvarem a si mesmos, não conseguem perceber que a verdadeira salvação está na cumplicidade ativa de todos os lucianos, que o rodeiam.
Nesse sentido, embora não tão entusiasmante quanto o tema poderia pressupor, o filme é extremamente pedagógico. E tem a curiosidade de ser protagonizado por um ator, que vive o seu big brother na versão menos glamourosa de uma prisão italiana aonde cumpre pena de prisão pelo homicídio de traficantes de um gang rival do seu. Daí que o realizador tenha enfatizado, com razão, o seu olhar de candura e de perplexidade perante uma realidade de que há muito está afastado…
Não me admiraria, pois, que daqui a umas décadas este «Reality» seja visto com bastante interesse pelos historiadores do pós-capitalismo...

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