quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

FILME: «Ricardo II» de Rupert Goold (2012)



Não deixou de ser surpreendente a coincidência de ver «Ricardo II» no mesmo dia em que iria ocorrer a reunião política do principal partido de oposição no qual se colocava a hipótese de iminente mudança na liderança. Que estranha singularidade, essa de assistir à rápida destituição de um frouxo monarca, incapaz da mínima visão estratégica e cujo poder assentava no fugaz apoio de um influente grupo de bajuladores, por um outro muito mais forte e dotado de uma compreensão alargada do que se espera do exercício da governação.
É claro que outras razões aconselhavam à descoberta da obra, mesmo considerando tratar-se de uma das peças menores do dramaturgo quinhentista: por um lado constituía a primeira das quatro produções aprovadas pela BBC para conferirem um cunho cultural ao clima de cosmopolitismo incrementado pelos Jogos Olímpicos de Verão de 2012, garantindo-se a grande qualidade e rigor com que os britânicos cuidam da obra shakespeariana. Mas, por outro, o facto de ser interpretada nos principais desempenhos pelos dois atores que, consensualmente, são tidos como os dois melhores Hamlets da década anterior (Ben Whishaw na pele do rei e Rory Kinnear no de Bolingbroke) também acrescentava interesse ao título.
Análise mais aprofundada levar-nos-ia à destreza de se contar toda a trama através de diálogos em verso e de se ser tentado a parar o filme nalguns dos seus fotogramas, tão interessantes se revelavam enquanto representações fiéis da pintura da época histórica em questão.
O que está em causa é a legitimidade de se questionar o carácter divino da função real. Se o poder do monarca deriva de uma atribuição transcendente, em que sérios riscos para a preservação da alma incorrem todos quantos levantam a espada contra ele?
Ora é quase uma evidência transversal em toda a obra de Shakespeare a inevitável transgressão dos princípios aparentemente inquestionáveis em função das piores facetas do comportamento humano: a intriga, a ambição, a necessidade de se estar com os que aparentam força a cada instante…
Mas não se esperem maniqueísmos, que impeçam um juízo crítico das personagens e das suas circunstâncias. Porque não teria o futuro Henrique IV a devida legitimidade para derrubar o primo, que o mandara injustamente exilar e o espoliara das terras e demais riquezas, quando o viu órfão do respeitado pai? Poderia suportar por mais tempo todas as injustiças cometidas sobre o povo e o escândalo das benesses distribuídas a um reduzido punhado de medíocres seguidores?
Perante os riscos de degradação, que tudo tende a ameaçar, o revoltado Lencastre não recua, ainda que chegue a sentir a tentação de respeitar a convenção e permitir um exercício de poder, mesmo que ilusório, por parte do seu enfraquecido monarca. Curiosamente a noite no Largo do Rato parece ter ficado nesse impasse com os antagonistas a medirem-se e a avaliarem a oportunidade ou não de desferirem o golpe fatal...
Na peça avança-se até ao expectável desiderato da tragédia: o líder frágil acaba destituído e assassinado por quem ainda não há pouco tempo o apoiava com tanto fervor e se julga assim no direito de voltar a ser incluído entre os favorecidos pelo novo poder.
Esperemos pelas cenas dos próximos capítulos do que se passará com o Partido Socialista para confirmarmos a impressionante capacidade do dramaturgo de Stratford-upon.Avon para demonstrar a intemporalidade das suas obras...

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