quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

LIVRO: «Morte no Teatro La Fenice» de Donna Leon



Devo a Joyce Di Donato, que estará na Gulbenkian no sábado a cantar os temas do seu álbum «Drama Queens», a descoberta de Donna Leon. É que, algumas semanas atrás, quando o canal ARTE transmitiu um documentário alusivo à mezzo soprano norte-americana, a escritora de policiais surgia aí como uma das suas melhores amigas e com a propagandeada característica de situar frequentemente as suas histórias em ambientes de teatros líricos, mormente em Veneza, aonde a câmara acompanhava as duas a passearem-se e a comentarem o mútuo interesse pela música barroca.
Esse estímulo levou-me a ler «Morte no Teatro La Fenice», romance escrito vinte anos atrás, mas que a terá promovido ao patamar das grandes autoras do género.
Finda a leitura, direi que também não é preciso exagerar. Embora interessante quanto baste, Donna Leon fica a léguas da inexcedível Patricia Highsmith que, anos a fio, nos habituou a romances impressionantes em que nos púnhamos a espreitar o que se passava duas ou três páginas adiante por não suportarmos o suspense em que éramos mergulhados.
Temos então a morte fulminante do maestro Helmut Wellauer no intervalo para o último ato da «Traviata», que ele estava a dirigir na conhecida sala de Veneza.
Cianeto, identifica logo de imediato uma médica trazida da plateia ao cheirar a chávena de café tombada ao lado do morto.
Porque o crime parece óbvio é chamado um comissário, que nos acompanhará por todas as páginas seguintes.
Guido Brunetti, assim se chama, não é nenhum Sherlock Holmes, dando-se a delongas para compreender verdadeiramente todos os caracteres dos possíveis suspeitos e da suposta vítima.
Embora  se trate de uma mera suposição, que a autora nunca confirma, Wellauer é uma espécie de duplo de Karajan, já que a ele se assemelha no prestígio, no perfecionismo da direção orquestral, no carácter reservado e na ambiguidade do seu comportamento durante o período nazi.
Brunetti vai, então, entrevistar o volumoso barítono Dardi, o pouco talentoso tenor Echeveste, o encenador Santore e a soprano Flavia Petrelli.
Começam a surgir possíveis situações equívocas, que poderão explicar o sucedido ao maestro: por exemplo fica-se a saber que, nessa mesma noite, Santore e Flavia Petrelli tinham sido vistos a saírem encolerizados do camarim aonde a tragédia estaria iminente, e se o primeiro não hesita em reconhecer esse facto perante o comissário, já o mesmo não sucede com a soprano. Mais adiante viremos a compreender quão idênticos são os motivos por que se haviam dado a tanta emoção: o homofóbico Wellauer não se coibira de os prejudicar seriamente por lhe indignarem as pulsões por parceiros do respetivo sexo.
Mas não querendo sujeitar-se a juízos demasiado apressados, ainda que os superiores o pressionem para arranjar rapidamente um culpado, Brunetti explora outras possibilidades: a viúva Elizabeth muito mais nova do que o defunto e herdeira da sua avultada fortuna. Ou Brett, a arqueóloga que coabita com Flavia e deixou suspensas as suas reconhecidas escavações na China para se sujeitar ao papel de assistente da amante. Ou ainda a velha Clemenza Sentina, que fora amante de Wellauer nos finais dos anos 30, quando estivera no auge do seu percurso artístico e se transformara numa indigente a (sobre)viver dificilmente num tugúrio de uma das ilhas mais pobres da cidade dos doges.
Enquanto não descobrimos (embora cedo adivinhemos) a resolução do caso, Donna Leon passeia-nos pela personagem mais interessante do romance: a própria cidade, que descreve assim, vista pelo olhar de Brunetti: Veneza que em tempos fora a capital da vida de dissipação de um continente, tinha-se transformado numa cidade provinciana que, virtualmente, deixava de ter vida depois das nove ou dez da noite. Ao longo dos meses de verão, a cidade conseguia recordar-se do seu passado de cortesã e cintilava esplendorosa, desde que os turistas continuassem a pagar e o tempo se mantivesse agradável. Todavia, durante o Inverno, ela tornava-se uma mulher velha e enrugada, desejosa de se deitar cedo e deixando as suas ruas desertas aos gatos e às recordações do passado. (pág. 49)
Ou também o público do La Fenice por quem a autora não parece demonstrar grande consideração: a coisa mais favorável que se pode dizer sobre essas pessoas é que são meros cães. Não vão ao teatro com o intuito de ouvir boa música, ou para assistir a um canto lírico cheio de beleza; vão para poderem usar os seus trajes novos e para serem vistos pelos seus amigos, pessoas estas que vão ao teatro exatamente pelas mesmíssimas razões. (pág. 178)
Brunetti vai-se interessando cada vez mais pela personalidade do morto, que descobre ter sofrido uma súbita perda de qualidades auditivas nas últimas semanas, o que explica o desagrado dos elementos da orquestra pelo trabalho com eles desenvolvidos nos ensaios da ópera de Verdi. Um médico de Pádua, que o maestro consultava anonimamente, vem confirmar essa tese. A ela associa-se outra não menos significativa: a pedofilia que ele sempre manifestara, quer engravidando a irmã de Clemenza Sentina, que morrera aos doze anos de aborto clandestino no verão do início da Segunda Guerra, quer, mais recentemente, violando a enteada da mesma idade numa noite em que julgava Elizabeth a voar para Budapeste.
Brunetti está então em condições de compreender o sucedido: para se vingar do marido, Elizabeth recorrera aos seus conhecimentos de médica e causara-lhe a surdez  progressiva com sucessivas injeções, que ele começara por julgar serem vitaminas.
Quando soubera definitiva a perda das capacidades auditivas e, consequentemente, da sua carreira, ele arranjara cianeto e simulara o crime suicidando-se, valendo a Elizabeth não ter chegado a ir ao camarim na altura em que ele lho solicitara.
Mas, porque toda a antipatia do comissário é endossada a Wellauer, ele redige um relatório  apontando para a tese de suicídio de um génio inconformado com a impossibilidade de prosseguir a sua admirada obra.

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