sexta-feira, 1 de março de 2013

LIVRO: «Amigos Influentes» de Donna Leon, Editorial Presença


Quando Guido Brunetti é visitado por um jovem burocrata jovem, que vem verificar a conformidade do seu apartamento com as plantas existentes na Conservatória de Veneza, não imagina estar perante a vítima mortal do homicídio, que começará a investigar dias depois.
Temos, assim, a abordagem da Veneza dos agiotas, dos drogados e dos funcionários corruptos, com Donna Leon a orientar o seu protagonista para o convívio com os pequenos comerciantes, que lhe servem de interlocutores privilegiados para entender as origens do que vai ocorrendo.
Já o escrevi aqui que, apesar de muito incensada e premiada, Donna Leon está a milhas de distância de Patricia Highsmith. Mas tem por si uma vantagem não despicienda: situa toda a sua ação em Veneza! Ora a cidade dos doges é extremamente sugestiva para criar uma atmosfera aliciante, que nos prende enquanto leitores. Nomeadamente, quando a autora se abstrai do fio da intriga e escreve trechos assim:
Brunetti passou a hora seguinte a refletir sobre a cupidez, vício para o qual os venezianos sempre tiveram uma propensão natural. La Sereníssima foi, desde o começo, um empreendimento comercial, pelo que a aquisição de riqueza sempre estivera entre os objetivos mais nobres para que um veneziano era educado a aspirar. Ao contrário dos esbanjadores dos sulistas, romanos e florentinos, que ganhavam dinheiro para o deitarem fora, que se compraziam em atirar para os rios copos e pratos de ouro para exibirem publicamente a sua riqueza, os venezianos cedo aprendiam a adquirir e manter, conservar, acumular e amealhar; também aprendiam a manter escondida a sua riqueza. É certo que os grandes palazzi que bordejavam o Grande Canal não falavam de riqueza escondida; muito pelo contrário. Mas esses eram os Mocenigos, os Barbaros, famílias tão luxuriantemente abençoadas pelos deuses do lucro que qualquer tentativa de disfarçar a riqueza teria sido vã. A fama protegia-os do mal da cupidez.
Os seus sintomas manifestavam-se muito mais nas famílias medianas, os gordos mercadores que construíram os seus palazzi mais modestos junto dos canais secundários, edificando-os sobre os armazéns para poderem, como aves nidificadoras, viver em contacto próximo com a riqueza. Aí, podiam aquecer os traseiros no borralho das especiarias e panos trazidos do Oriente, aquecê-los em segredo, sem mostrarem aos vizinhos o que se escondia por detrás das barreiras gradeadas das portas de água.
Ao longo dos séculos, essa tendência para amealhar fora-se infiltrando e enraizando na população em geral. Chamavam-lhe muitas coisas — parcimónia, economia, prudência — e o próprio Brunetti fora educado para as valorizar, a todas.  (pág. 153)
Para além do interesse nesta forma de nos descrever as idiossincrasias de Veneza poderão apontar-se outras virtudes à narrativa de Donna Leon: o acompanhamento da vida doméstica de Brunetti, mormente o seu relacionamento sempre ambivalente com a mulher, a filha e os sogros, e a constrangida convivência com um vice-questor vaidoso e incompetente, seu superior hierárquico no emprego. Sem esquecer a denúncia de um ambiente propício à afirmação duvidosa dos amigos influentes de que fala o título...

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