A entrevista a José Sócrates deverá ter feito assemelhar cavaco silva ao Júlio César de Uderzo e de Goscinny, quando o imperador romano se viu sucessivamente derrotado pela irredutível aldeia gaulesa. Quantos de nós teríamos desejado espreitar gulosamente a fúria com que o filho do gasolineiro de Boliqueime terá ouvido o seu nome e começado a sentir doses súbitas de aguda otite.
Como dizia Pedro Santos Guerreiro, o que resultou da abordagem do comportamento presidencial durante a crise de 2011 foi uma sova do caixão à cova. Que a reação de hoje, vinda de Belém, seja uma breve nota no facebook em que classifica de retórica inflamada e vazia de conteúdo, diz bem da pobreza argumentativa de um protagonista maior da situação em que o país caiu e justificativa das ruidosas vaias a que se sujeita nas manifestações populares.
É que foi decerto uma das grandes clarificações, que a entrevista de José Sócrates trouxe: para além da conjuntura internacional, que deitou a perder os esforços de resolução dos défices estruturais da economia portuguesa operados entre 2005 e 2009, Portugal viu agravados os seus principais indicadores da qualidade de vida da sua população pela convergência de esforços de cavaco silva com passos coelho para cumprirem o velho sonho de sá carneiro de contar com uma maioria, um governo e um presidente.
Com todo poder em si concentrado, a direita julgou deter as condições bastantes para operar a inversão do PREC e prolongar-se indefinidamente no poder. É que, sem um setor empresarial do Estado capaz de gerar receitas, e com as televisões a imitarem o papel das de Berlusconi na estupidificação dos espectadores e na repetição indefinida da mensagem de não existir outra alternativa à dos que propõem uma sociedade apenas caracterizada pela liberdade de ação de quem domina os mercados, nunca a esquerda deveria poder demonstrar a exequibilidade de uma outra alternativa.
Azar o de passos, relvas, cavaco e companhia: a ganância em retirarem o mais urgentemente a riqueza da maioria dos cidadãos para a transferir para o pequeno núcleo de oligarcas a quem servem de marionetas, deitou o esforço a perder. E hoje vêem-se condenados a desempenharem o papel de miguel de vasconcelos, que acabou atirado da varanda, ao escolher a defesa dos que exploravam a maioria dos portugueses.
É neste contexto, que a retoma da palavra por Sócrates acaba por ser muito importante. Porque se há silêncios que pesam, as palavras assumem ainda maior sentido, quando orientadas para a exaltação do que de melhor existe em quem o ouve e vê recuperado o sonho de um futuro muito diferente do inferno prometido por esta gente de passagem…
Hoje, nas ruas e nos fóruns das televisões e das rádios viu-se já a transformação em marcha: a entrevista representou uma pedrada num charco que só a direita julgava convenientemente estagnado. As ondas de choque das palavras de Sócrates só vêm somar-se às de uma dinâmica, que têm tido nas manifestações de rua o sentido de um fim de ciclo a anunciar-se…
E, como se interrogava Miguel Abrantes no blogue «Câmara Corporativa», que terão pensado os 1,6 milhões de espectadores (1, 845 milhões, às 21.19) que assistiram à entrevista de José Sócrates perante as manobras para tentar impedir o ex-primeiro-ministro de ter acesso à televisão?
Quase apostaria que a grande maioria terá saído da experiência com um oportuno questionamento sobre a narrativa com que terão sido bombardeados nestes dois anos...
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