Documentarista e realizador de origem japonesa, Kenichi Watanabe explora, desde 2009, a história secreta do Japão do pós-guerra em excelentes filmes militantes e muito documentados.
Depois de «O Japão, o Imperador e o Exército» e «A Face Escondida de Hiroshima» (2011), em que abordava os segredos e as mentiras relacionadas com a irradiação das populações de Hiroshima e de Nagasaki, compreende-se porque aborda, com «O Mundo Após Fukushima», as consequências da catástrofe ocorrida há dois anos no Norte do Japão.
Watanabe estava a preparar o seu documentário sobre Hiroshima, com filmagens marcadas para 15 de março, quando ocorreu a explosão da central de Fukushima a 11 desse mesmo mês. O que motivou uma mudança de planos: em vez de ir para a cidade bombardeada pelos norte-americanos durante a Segunda Guerra Mundial, a equipa de rodagem ficou retida em Tóquio durante uma semana em que parecia ali imperar o caos e a desorientação.
Foi preciso esperar pela segunda-feira, 14 de março, para se ter uma espécie de posição oficial sobre o que se estava a passar. Os transportes públicos estavam parados, incluindo os comboios, os supermercados não estavam a ser reabastecidos.
Às 11 horas da manhã desse dia o segundo reator da central explodiu. Tinha marcado uma entrevista na televisão pública NHK ao meio-dia para discutir o conteúdo do filme sobre Hiroshima e aí, também ninguém me conseguia dizer o que quer que fosse sobre o que se estava a passar. Agora sabe-se que a administração estatal estava completamente à deriva.
A ideia original do documentário «O Mundo depois de Fukushima» - produzido pelo canal ARTE - era a de testemunhar esses momentos para gerar uma reflexão subjetiva sobre a civilização, o Estado moderno, o sistema industrial e a energia nuclear.
Quando fiz as filmagens concluí que as vozes das testemunhas eram muito mais incisivas do que a minha subjetividade pessoal. Eram elas que deveríamos escutar. Por isso alterei a orientação geral, muito embora me convencesse de não bastar um filme para dar o assunto por tratado. Existirão muitas outras perspetivas a explorar. Desde o 11 de março de 2011, não consigo deixar de pensar em Fukushima.
Fukushima é uma questão, que abarca a totalidade da nossa civilização. Se é necessário denunciar o mundo nuclear, também devemos reconhecer os aspetos positivos trazidos pelo átomo à nossa civilização, às nossas vidas. Por exemplo, o computador desenvolveu-se porque os investigadores e os fabricantes do nuclear necessitavam de muitos cálculos matemáticos.
Mas devemos reconhecer que o mundo de Fukushima prima pelo absurdo. Existem tantas mentiras sobre o ocorrido, que chega a parecer surrealista.
Podemo-nos irritar, mas a cólera cansa e será preferível transformá-la num fator transformador. A destruição nuclear começa por ser a da natureza e da alimentação, que estão na base da nossa cultura. É essa a verdadeira tragédia e para que a sintamos temos de mostrá-la como ela é magnífica. Daí que tenhamos consagrado muito tempo à luz, à forma como filmávamos as sequências, justamente porque abaixo dessa superfície magnífica tudo estava destruído.
Quando mostro os pescadores a pesarem os peixes contaminados pelas radiações para se fazerem indemnizar pela Tepco, e atirá-los depois para o mar, espero que se sinta a crueldade subjacente. Daí que também tenha querido reduzir as explicações narrativas de forma a deixar ao espectador um tempo de reflexão.
A vertente política é importante, mas a poética não o é menos. E é o que faz falta no movimento antinuclear. É importante alargar a perspetiva. Os filósofos e os escritores devem falar, os músicos e os pintores devem criar, em torno desse mesmo questionamento sobre a civilização.
Fui três vezes a Fukushima. A primeira, para identificação da região, no inverno de 2012, quando viajei sozinho num carro de aluguer. O que me permitiu descobrir a costa, reunir com associações de pescadores, com pessoas das coletividades locais. Toda essa costa está devastada, as pessoas foram evacuadas e vivem em contentores. Já passaram dois anos e a situação não muda, porque tudo está bloqueado pela radioatividade, cuja erradicação desconhece-se como conseguir.
Voltei lá em abril e julho de 2012 com um diretor de fotografia e um engenheiro de som. Trabalhámos na zona contaminada. Sobretudo com mulheres, que são quem melhor sentem a ameaça, o perigo relativamente aos filhos. Acredito que elas estão mais politizadas do que os homens, possuem uma consciência mais aprofundada.
No filme o sociólogo Ulrich Beck situa assim o problema: a maioria das vítimas de Fukushima são vítimas potenciais, ou seja, todas as patologias relacionadas com as radiações ainda não se desenvolveram e que uma parte significativa dos que vão sofrer ainda nem sequer nasceram.
Constata Kenichi Watanabe: já se detetaram cancros da tiroide em dez crianças nestes dois anos em 38 mil examinadas num país aonde se costuma verificar um ou dois casos num milhão. O pior é que os médicos tenham negado essa ligação com as radiações sob o argumento de existirem investigações em torno do caso de Tchernobyl em como os cancros na tiroide em crianças só aparecem ao fim de quatro anos. Ora, como em Fukushima, esses casos apareceram ao fim de dois anos, o discurso oficial não reconhece que esses casos estejamrelacionados com as radiações. Ora sabe-se hoje que, na Ucrânia, seis meses depois de Tchernobyl, já existiam uns vinte casos de cancros da tiroide em crianças, uns trinta ao terceiro ano e que o número de casos tinha duplicado ao fim de quatro anos.
A nossa geração nascida logo após a segunda guerra mundial participou em enormes manifestações e revoltas sociais nos anos 60, que em nada se assemelham com as de hoje. Para a geração mais velha, é estranha a atual forma de manifestar: todas as sextas-feiras ao fim da tarde, desde o primeiro aniversário da catástrofe de Fukushima, existem pessoas reunidas em frente da residência oficial do primeiro-ministro. São trabalhadores precários, os «freeters», que começaram essas ações em 2004, e englobaram depois as reivindicações antinucleares.
Numa certa altura falou-se da «revolução das hortenses. Chegaram a ser 200 mil pessoas, são agora menos, mas prosseguem em defesa do seu objetivo. É um movimento social durável. Acontece sempre no mesmo sítio, com as mesmas pessoas, sem personalidades políticas, nem sindicatos. Querem sair do antigo regime, até mesmo nas formas de se manifestarem. Para tal chegaram a um compromisso com a polícia: mantém-se no passeio sem chegarem a ocupar a rua.
Com tal nível de obediência, os militantes da nossa geração desconfiam, classificam-no de pueril, que acabará depressa… mas não, não podemos desqualificar esta resistência. O que importa é que perdure. E todas as sextas-feiras à noite há novas pessoas a associarem-se às que costumam lá ir. É um movimento aberto, utilizam preferencialmente o twitter ou o facebook em vez de panfletos.
É que até em Tóquio as pessoas sentem-se envolvidas. Mais para ocidente, para Osaka, Kyushu, Okinawa, pode-se pensar que se trata de um outro país. Quanto mais afastados de Fukushima, maior é essa tendência. E é precisamente por isso que não basta situarmo-nos apenas no terreno político, que temos necessidade de outras expressões, de um alargamento da frente de luta. O cinema, o audiovisual, são ferramentas muito poderosas, sem esquecer também a literatura, as belas artes…
Para essas formas de expressão é preciso dar tempo ao tempo, mas elas não deixarão de surgir!
No filme o ex-prefeito de Fukushima diz que se nada for feito, a central, quotidianamente sujeita a sismos, poderá pôr Tóquio em risco. Penso que, enquanto não for resolvido o problema da central (o que irá levar entre trinta e quarenta anos), enquanto não tivermos consciência da ameaça que ela faz pender sobre nós, enquanto não pudermos fechar os olhos a essa realidade, o Japão manter-se-á moralmente são.
No que a mim me diz respeito, enquanto Fukushima existir enquanto problema, não poderei viver sem o ter latente no pensamento, enquanto origem moral para decidir como viver de outra forma.
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