segunda-feira, 18 de março de 2013

TEATRO: « A Visita da velha Senhora» de Friedrich Dürrenmatt, no Teatro S. Luiz


1.
Vão longe os dias de prosperidade da cidade de Güllen. À beira da penúria, os habitantes só têm como derradeira esperança a breve visita de uma antiga filha da terra, entretanto enriquecida e decidida a aí concretizar a cerimónia do seu oitavo casamento.
No início da peça temos, então, toda a cidade a esperar Clara Zahanassian na estação ferroviária, esperançada em dela receber uns milhões tão necessários a revitalizar a sua falida economia.
Mas, embora não enjeite essa possibilidade, Clara volta à cidade movida por uma vingança cruel: ela atribuirá mil milhões à cidade, metade para a sua falida municipalidade, a outra metade para ser dividida por todos os seus habitantes, se se lhe fizer justiça. Pelo menos na forma como ela vê a formula: quarenta e cinco anos atrás ela saíra dali escorraçada, depois de um juiz lhe negar a paternidade da filha, ainda no ventre, como sendo da responsabilidade de Alfred Ill que, para o efeito, conseguira de dois amigos o perjúrio de também a terem possuído. Daí ter saído dali destroçada, para o inevitável trajeto pela prostituição em Berlim e pela perda dessa filha. Não tivesse um milionário ficado seduzido pelos seus cabelos ruivos ao ponto de a querer desposar e triste teria sido o seu desenlace.
Agora coloca como condição para a atribuição da generosa oferta que a cidade execute o traidor.
A primeira reação dos habitantes de  Güllen é a da recusa escandalizada dessa oferta em nome dos valores civilizacionais, que os guiam. Mas, logo no dia seguinte, Alfred vê os vizinhos a flexibilizarem-se, pouco a pouco, perante a proposta de Clara, já que não só lhe solicitam gratuitamente bens da sua mercearia, mas também começam a endividar-se rapidamente com novas roupas e calçado.
Nos dias seguintes, Alfred irá apoquentar-se cada vez mais com as alterações detetadas nos seus antigos amigos, que não hesitam agora em censurar-lhe o comportamento celerado de outrora. Se até a mulher e os filhos parecem ansiosos pelo cumprimento do negócio!
Por isso chega a pensar fugir mas, debalde, não consegue ter a coragem de entrar no comboio, que o poderá levar dali.
O único habitante com dúvidas é o reitor da escola, que ainda procura demover Clara do seu propósito, mas esta revela-se inflexível. E mais: confessa ter sido ela a comprar todas as fábricas e outras empresas da região para as fechar e levar os habitantes à penúria!
Nesse clima de tensão e de hipocrisia, resta ao isolado Alfred o refúgio do seu quarto, eliminadas as possibilidades de se ver apoiado pelo chefe da polícia e pelo presidente da câmara - visivelmente corrompidos pela milionária.
A cidade é então invadida pelos jornalistas atraídos pelo novo casamento de Clara. E é perante eles, que decorre a assembleia municipal aonde toda a cidade aprova os termos do negócio em causa. Seguindo-se, quase de imediato o seu cumprimento sob a forma do frio assassinato de Alfred, cuja morte será explicada oficialmente como tratando-se de um ataque cardíaco.
Na manhã seguinte a velha senhora parte de Güllen, depois de ter passado o cheque prometido.
2.
No muito que já se escreveu sobre a peça, existem muitas referências à similitude entre o destino vivido pelos habitantes de Güllen e os portugueses de hoje. Uns e outros falidos e desesperançados perante um ambiente dominado pelo desemprego e pela falta de projetos para o futuro. Assim como também houve quem visse em Clara Zahanassian a personificação da Europa, por deter os milhões necessários para alimentar a miragem redentora.
Embora admissível, essa leitura comporta uma perspetiva assaz perigosa sobre a realidade presente por caucionar duas linhas de argumentação igualmente reacionárias: a primeira tenderá a identificar os cidadãos da pequena cidade com aquela tenebrosa tese de terem vivido acima das suas possibilidades, endividando-se ao ponto de prescindirem de quaisquer escrúpulos perante o ultimato da sua credora.
Quem ainda acredita na suposta bancarrota do Estado português por conta dos desvarios despesistas dos governos socialistas ou age de má fé ou denota a idiotice crassa de quem não consegue interpretar a realidade recente com um mínimo de argúcia.
Mas, numa segunda linha de interpretação, também se poderá deixar pressupor a inevitabilidade da vitória dos credores face à expressão dos piores instintos de sobrevivência de quem lhes fica sujeito à chantagem.
Existe, pois, um desconforto no final, quando a peça se conclui e os espectadores dificilmente chegam à terceira salva de palmas. Porque, independentemente da valia do texto escrito por Durrenmatt em 1956, da irregularidade das interpretações (entre as boas de alguns atores e as confrangedoras mediocridades de alguns dos secundários) e das soluções de encenação muitas vezes demasiado ilustrativas do que pretendem significar, o que mais limita a aprovação deste trabalho é precisamente a razão de ser da sua escolha por Nuno Cardoso.
É que, se queria optar por um texto dramatúrgico capaz de interrogar com sagacidade a realidade dos nossos dias, esta não seria, nem por sombras, uma primeira escolha. Sobretudo por se prestar a servir os interesses ideológicos de quem mais responsabilidades tem pelo clima de desespero em que se veem os habitantes desta grande Güllen, que é Portugal!

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