Um dos artigos mais interessantes da edição portuguesa do «Le Monde Diplomatique» de dezembro é da autoria de António Carlos dos Santos, professor do ISEG, que foi um dos secretários de Estado de Sousa Franco.
O título é «A Revolução Fiscal do Governo: regressividade e redistribuição inversa», sendo apresentado com a seguinte síntese: “O programa ideológico que o governo tem imposto na arquitetura do Orçamento de Estado para 2015: austeridade, redução dos rendimentos dos trabalhadores e pensionistas, ataque ao Estado Social. Continua também a «revolução fiscal permanente», eliminando a progressividade dos impostos, mantendo o que era temporário e criando alguns embustes políticos. Penalizando uma vez mais os rendimentos mais baixos e os estratos médios, ainda por cima num contexto de enorme erosão das proteções sociais, cria mais injustiça e mais desigualdade.”
No seu texto, António Carlos dos Santos lembra qual foi a estratégia da coligação PSD-CDS desde o início: negando tudo quanto prometera durante a campanha eleitoral e no próprio programa do governo, preparou-se “a construção de um sistema fiscal mais regressivo e de uma redistribuição, por via fiscal e parafiscal, da riqueza e do rendimento desfavorável a trabalhadores e pensionistas”.
Desde o primeiro instante, passos coelho soube que iria empobrecer a classe média e fazê-la pagar, juntamente com os trabalhadores mais mal remunerados e com os pensionistas, os custos de uma recuperação dos créditos investidos pela banca francesa e alemã na nossa economia nos anos anteriores. Substituídos esses créditos pelos empréstimos do FMI e do BCE, os portugueses ficavam doravante condenados a um estrangulamento, que a austeridade tenderia a aliviar.
O verdadeiro significado da fórmula «ir além da troika» era o da implementação de um programa ideológico destinado a destruir tanto quanto possível o Estado Social e infletir a lógica de progressividade fiscal anteriormente instituída e baseada em que pagasse mais quem mais rendimentos auferisse.
Na cabeça de vítor gaspar, que serviu de guru a passos coelho, a situação apresentava-se assim: quanto mais austeridade e maior redução dos custos do trabalho se impusessem, mais o país ficaria competitivo relativamente aos seus concorrentes diretos nos produtos a exportar. Num exagero admissível para tão iluminadas cabeças, bastaria facilitar os despedimentos, reduzir os ordenados e os impostos aos patrões para que os produtos portugueses conseguissem ser tão baratos quantos os fabricados por chineses, cambojanos ou vietnamitas.
O primeiro amargo de boca sentido pelos autores dessa estratégia foi quando a enorme manifestação de 15 de setembro de 2012 enterrou a TSU. Uma tão evidente tentativa de passar rendimentos dos bolsos dos trabalhadores para os dos patrões mereceu tão veemente censura, que os estrategas do governo tiveram de ensaiar novas estratégias. Que resultaram já que os orçamentos de 2012, 2013 e 2014 produziram os mesmos efeitos com um conjunto de medidas introduzidas sem grande contestação, mas enormes custos sociais:
- corte do subsídio de férias e de Natal aos funcionários públicos, aos trabalhadores do setor empresarial do Estado e aos pensionistas;
- alteração de estrutura de taxas e de escalões do IRS, que concretizou um monstruoso aumento de impostos e diminuiu o escalonamento da progressividade anteriormente existente.
- a introdução da «sobretaxa extraordinária» de 3,5% no IRS;
- o aumento desmesurado da tributação dos rendimentos da Categoria H (a dos pensionistas) com a criação da obscena «contribuição extraordinária de solidariedade», com taxas entre 3,5 e 10%, acompanhadas por cortes nas pensões da Caixa Geral de Aposentação e nas pensões de sobrevivência (criando-se a condição de recursos para a atribuição das pensões de viuvez);
Paralelamente o governo quis reduzir os impostos aos patrões - o IRC de 25% para 23% em 2014 e para 21% em 2015. Considerava tal medida uma forma eficaz - e que já se comprovou ser redondamente falsa - de facilitar investimento produtivo, criar mais emprego e gerar crescimento.
Diz António Carlos dos Santos: “trata-se de um bónus às grandes empresas, muitas delas em posição de quase monopólio, vivendo de rendas que reduzem a competitividade do país.”
Mas, mesmo tais medidas favoráveis ao patronato, perderam coerência, quando a obsessão em aumentar a receita fiscal, levou o mesmo governo a aplicar outros mecanismos de sentido oposto, como a derrama estadual cuja receita duplicou, ou as tributações autónomas cujo valor subiu 20%.
Chegamos ao Orçamento para 2015 e duas das principais bandeiras exploradas pelos partidos do governo até à exaustão - o quociente familiar e a fiscalidade verde - não conseguem esconder um propósito continuado em procurar aumentar a receita como forma de tentar pagar uma dívida superlativamente agravada nestes três anos e cada vez mais impossível de ser satisfeita.
Sobre o quociente familiar já se percebeu que nem facilitará o aumento da natalidade, como só aproveitará às famílias de elevados rendimentos, que recebem assim um bónus. Normalmente a classe média tem poucos filhos e não tem qualquer benefício. Quanto às famílias numerosas das classes mais desfavorecidas também nada ganham, porquanto os seus parcos rendimentos já as tornavam isentas do pagamento de impostos.
Quanto ao imposto verde também já se concluiu tratar-se de forma chico esperta para aumentar as receitas fiscais sem qualquer impacto ecológico. Como conclui António Carlos dos Santos “a reforma da fiscalidade verde evoca (…) a configuração da melancia: verde por fora e, neste caso, azul-laranja por dentro”
Torna-se urgente a implementação de uma nova reforma fiscal, que recupere os princípios de justiça continuamente espezinhados por este governo. Por isso mesmo, e apesar da vontade expressa de tantos comentadores em como seria tão “imprescindível” uma grande coligação do PS com a direita, esta última terá de ser completamente escorraçada do poder por muitos anos. Muitos mais do que os necessários para reparar os muitos danos por ela legados ao país.
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