Há vinte e poucos anos costumava andar no mar com um comandante com quem tinha animadas discussões políticas à hora das refeições. Na época Mandela ainda estava em Robben Island, mas eu apostava que ainda o veríamos liberto e como presidente de uma África do Sul sem apartheid.
Para mim era evidente que se o muro de Berlim caíra e precipitara o fim dos diversos regimes do leste europeu, a mesma dinâmica histórica imporia outras mudanças aonde a perspetiva ocidental do que era a Democracia ainda não imperava. Mais rapidamente do que eu próprio esperava essa previsão logo se concretizaria, permitindo-nos em poucos meses constatar in loco, essas duas Áfricas do Sul - a da segregação racial e, depois, a da sua conversão à democracia multirracial e multipartidária.
Vivemos nesta altura uma fase semelhante. O capitalismo financeiro tem mostrado a sua natureza predadora um pouco por todo o lado, muito particularmente desde que o Lehman Brothers faliu em setembro de 2008. Só cá em Portugal já vimos afundarem-se desde então o BPN, o BPP e o BES. E já se clarificou suficientemente a natureza de um conjunto de mitos, que conseguiram iludir muitos crédulos durante demasiado tempo: por exemplo que as privatizações justificavam-se, porque a gestão do Estado era mais incompetente do que a dos particulares ou que elas trariam grandes vantagens aos consumidores, porque aumentavam a concorrência para a prestação dos mesmos serviços ficando eles bastante mais baratos.
O que estes seis anos de neoliberalismo à solta tem demonstrado é o acelerado empobrecimento da maioria em benefício de um reduzido número de oligarcas, que nunca se contentam com quanto têm e inventam esquemas “habilidosos” para fugirem aos impostos e precarizarem o mais possível aquele que deveria ser um dos principais direitos a serem respeitados: o de se ter um trabalho digno e suficientemente remunerado.
Estamos assim numa situação semelhante à que me encontrava na altura das discussões com o comandante que aqui trouxe a talhe de foice: aparentemente vivemos numa sociedade onde o capitalismo parece imparável, tendo em conta a riqueza e o poder político controlado pelo tal 1% de oligarcas.
Se apostarmos na possibilidade de vermos o Estado recuperar a curto prazo a importância, que deveria ter no investimento e na gestão de setores essenciais da Economia, arriscamo-nos a ser vistos como uns líricos com nostalgia de um passado irreversível.
E, no entanto, as vozes que se levantam a rejeitar que as coisas continuem a ser como são, tornam-se mais audíveis. Muito provavelmente a Grécia terá em breve um governo liderado pelo Syriza, que alavancará muitos outros movimentos e partidos apostados em dizer não à ditadura do mercado e dos credores. E os próprios partidos socialistas e sociais-democratas serão confrontados com o reequacionamento das suas estratégias.
É que, nos últimos tempos, os europeus têm reagido erradamente perante as suas inquietações ao darem apoio imerecido às propostas da extrema-direita. Em quase todas essas escolhas, a prioridade parece ter a ver com a islamofobia, que encontrou razão de ser no indisfarçável apoio ocidental àqueles que tinham sido incensados como heroicos mujahedins antissoviéticos no Afeganistão e, depois se transformaram em talibans e ou em terroristas da Al Qaeda, ou como “combatentes da liberdade” contra Bashar al Assad e, depois se corporizaram nos tenebrosos assassinos do “Estado Islâmico”.
Ao apoiarem propostas políticas de extrema-direita, sob a capa de serem nacionalistas, o que os povos europeus andam a pretender é o regresso dos Estados-nações. E daí as aspirações independentistas dos escoceses ou dos catalães.
Os europeus não se sentem confortáveis com um tipo de política em que os seus governantes limitam-se a fazer papel de procônsules de quem os comanda de fora, seja com o nome de troika, comissão europeia ou o que quer que seja.
A nostalgia pelo papel de um Estado forte está na ordem do dia e a esquerda não se pode alhear dessa dinâmica, até por ser ela a garantia de se recuperarem os direitos sociais entretanto perdidos relacionados com a educação, a saúde, a segurança social, etc.
Tem por isso muito interesse uma entrevista saída no «Público» de ontem em que o diretor de um dos principais museus holandeses - o Van Abbenmuseum - repete o que veio dizer a uma interessantíssima conferência na Gulbenkian: que esse Estado forte, que se deverá opor ao desígnio das tais oligarquias, é tão urgente, que ninguém se pode pôr de fora. Nomeadamente os artistas, convidados a esquecer o paleio inócuo da «arte pela arte», para criarem uma «arte útil», transformadora, capaz de contribuir para que a justiça e a igualdade prometidas pela Declaração dos Direitos do Homem ganhem novamente a devida preponderância.
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