sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

Como as democracias justificam o injustificável (1)

Seria irónico, se não se tratasse de algo de trágico, que José Sócrates tenha redigido um ensaio sobre a tortura para a Universidade parisiense que frequentou e agora esteja sujeito a uma manifestação perversa desse mesmo tipo de fenómeno político. Porque a sua inexplicável detenção em Évora há mais de um mês não é mais do que a demonstração da arrogante prepotência do procurador rosário teixeira e do juíz carlos alexandre, que caracteriza precisamente o comportamento típico dos torturadores.
Por isso mesmo, quando terminar esta provação, será a altura de o poder político fazer o julgamento de quem usa e abusa de uma certa forma de ler a lei e é capaz de impor sanção tão absurda. Importa encontrar a forma de nos guardarem de quem nos guarda como José Sócrates sugeriu inteligentemente quando pediu um exemplar de «Os Irmãos Karamazov» para reler no cárcere a parte em que se aborda «O Grande Inquisidor».
Vem por isso a propósito uma abordagem da temática da tortura no excelente programa do canal ARTE conduzido por Raphäel Enthoven e para o qual convidou o filósofo Michel Tereschenko.
Em 2008, quando os abusos cometidos na prisão de Abu Ghraib  ainda estavam na ordem dia, este último publicara um ensaio intitulado «Du Bon Usage de la Torture», que serviria de guião para a conversa entre o anfitrião e o convidado desta edição de «Philosophie».
O caso que começou por servir de mote para a discussão teve a ver com o relato de Jean Marie Le Pen, em que este dirigente da extrema-direita francesa se orgulhava de ter torturado militantes do FLN durante a guerra da Argélia por constituir para ele a única forma de obter informações relevantes e impedir o sucesso de atentados, que abrangeriam muitas vítimas.
O torcionário apresentava-se assim como o “salvador” capaz de “sujar as mãos”, numa perspetiva com o seu quê de sacrificial. Ele até poderia sentir repugnância pelo que fazia, mas era capaz de se imolar em nome do que entendia ser o superior interesse coletivo.
A realidade parece não ter coincidido propriamente com as memórias de Le Pen, que apenas quis criar de si o mito de ter curriculum na salvação de muitas vidas francesas.
Na realidade quase sempre a lógica da questão é até que ponto a tortura pode corresponder a uma ferramenta eficaz para salvar vidas? A prática demonstra que ela não ultrapassa o âmbito académico.
Os “falcões” norte-americanos terão utilizado o exemplo de Khalid Sheikh Mohammed  como aquele que legitimaria todos os meios tido como imorais para obter informações relevantes. Dado como o organizador dos atentados do 11 de setembro não existem confirmações quanto ao facto das tais informações relevantes para evitar novos crimes terem sido obtidas antes dele ser sujeito a tortura. E, mesmo no caso das prisões por ele propiciadas, pode-se questionar se é lícito prender preventivamente alguém que, mesmo estando a preparar um delito, ainda não o chegou a cometer.
No próximo texto sobre a tortura iremos abordar o caso da série «24 Horas», cujo sucesso muito contribuiu para tornar a opinião pública mais condescendente com o ato de torturar alguém.

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