domingo, 27 de abril de 2014

MÚSICA: O canté e a música pimba

(a propósito do filme «Alentejo, Alentejo» de Sérgio Tréfaut)
E ao terceiro dia de Indie tivemos o privilégio de assistir à apresentação de «Alentejo, Alentejo», a notável viagem que Sérgio Tréfaut empreendeu por todo o sul do país e pela região de Lisboa para captar a essência da cultura popular ligada ao canté, que poderá ser reconhecida em breve como integrante do Património Mundial da Humanidade à semelhança do já conseguido com o fado.
O filme já fora estreado no dia de abertura do Festival mas, tratando-se então da véspera do 25 de abril, impuseram-se então outras formas de homenagear a  Revolução dos Cravos. Mas ainda fomos a tempo de classificar com nota máxima este documentário, que está inserido nos filmes a concurso.
Uma das cenas iniciais, que vale a pena aqui descrever é a da vinda de um dos coros a Lisboa para participar numa iniciativa publicitária dos hipermercados de belmiro de azevedo no Terreiro do Paço. As duas dezenas de cantores julgavam vir mostrar a arte do seu canto a uma plateia atenta e, afinal, a produção manda-os desfilar pelo meio do público, com as suas vozes abafadas pelos altifalantes donde um locutor palerma enaltece sem cessar a iminente chegada ao palco do cantor pimba, que todos ali “deveriam” estar em pulgas por ouvir.
Temos, pois, de um lado o carácter genuíno do cantar alentejano, enquanto expressão da cultura de uma parcela significativa da população nacional, e por outro esse tal tony carreira cujo sucesso mediático se deve  à promoção da mediocridade mais execrável e inautêntica.
Fica logo dado o tom: temos um património cultural a defender desrespeitado sem escrúpulos por quem faz da música um objetivo comercial e ideológico - enquanto se cantam “sonhos de menino”, passam-se mensagens subliminares de saudades pelo tempo salazarento ao qual esse tal tony tanto gostaria de voltar!
Mas compreende-se, porque os “sonhos de menino” pimba nada têm a ver com o pesadelo da infância de Catarina, uma anciã que, em seis minutos impressionantes, sintetiza na perfeição o que eram esses tempos de fome a sério e de trabalho esforçado nos campos. Quando uma sardinha dava para várias bocas e o canto significava um paliativo para as dores físicas e psicológicas de cada dia. A ela e aos demais cantores, que também se referem a tal passado, ninguém os convenceria a regressar ao passado fascista de que os tonyscarreiras são tardios veneradores..
Mas, lançados o mote para o documentário, este lança-se no contacto com muitos dos mais de cento e cinquenta grupos de canté, que existem no país. Explicitam-se as suas origens - a exemplo do canto dos escravos negros do Sul dos EUA, que criaram o blues - o canté surge nos assalariados agrícolas, que vendiam a força do trabalho nos latifúndios do Alentejo e obtinham nessa diversão um fraco consolo para os seus sacrifícios de sol a sol.
Mediante uma fotografia de qualidade irrepreensível conhecemos a ambiência desse cantar, quer nas paisagens dos campos hoje quase todos por cultivar, quer nas tabernas onde, à noite, os homens se juntavam para prosseguir a sua catarse musical.
Mas, como se comprova no filme, o canté não é arte exclusivamente masculina: além de existirem grupos de mulheres, também não faltam os agrupamentos mistos. E, apesar de já não existirem práticas agrícolas como as de antes da Revolução de Abril, prossegue o esforço em manter viva a tradição através de jovens dispostos a pegarem no testemunho e a transformarem-se nos seus fiéis guardiões.
Sérgio Tréfaut conseguiu, de facto, criar a obra definitiva sobre o canté, confirmando-se como o realizador português mais à vontade para exprimir em imagens a resiliência de culturas identitárias muito fortes perante a ameaça de contextos, que as tenderiam a asfixiar.
O episódio inicial no piquenicão do Terreiro do Paço demonstra que o combate é duro e com armas desiguais (quantas vezes aparece um coro alentejano na televisão em comparação com a constante agressão da música pimba?), mas o canté e outras expressões da cultura popular têm por si a força das raízes. E a essas dificilmente os produtos transitórios e plastificados vergarão, por muito agressiva que seja a sua publicidade.



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