quarta-feira, 9 de abril de 2014

LIVRO: «Pó, le roman d’un fleuve» de Paolo Rumiz

Quando a viagem torna-se na arte de apreender, no mesmo movimento, o espaço e o tempo. E a literatura transforma-se num banho de humanidade.
Em França acaba de ser publicada a tradução do livro que Paolo Rumiz dedicou ao rio Pó. «Pó, le roman d’un fleuve» é, nos seus objetivos algo semelhante ao que Claudio Magris já levara por diante com o seu «Danúbio». Ou seja a explicitação de uma cultura associada a um rio, que vai rasgando vales entre penedias e se vai aproximando da foz como se cumprisse por si mesmo um desígnio muito para além da sua evidência física. É olhar para a água em movimento como um estado de alma, que se reflete em idiossincrasias como não se encontram em mais lado nenhum.
Não havia um plano bem definido para esta viagem: apenas um rio, um local de partida e outro de chegada. E, depois, alguns amigos, alguns barcos adequados para cada um dos seus percursos até ao mar.
Apenas um rio, o maior de Itália. O Pó, esquecido, abandonado, regressado ao seu estado selvagem. Através das regiões mais povoadas de Itália, industrializadas, barulhentas, poluídas, mas cingidos aos curso do rio, Paolo Rumiz e os seus companheiros descobrem um espaço virgem de uma espantosa beleza e um silêncio tal, que se surpreendem a sussurrar.
Paolo Rumiz pretendia «ouvir a voz do Pó» - mas eis que, cortadas todas as amarras, essa voz parece coincidir com as de tantos outros rios do mundo  do Hudson ao São Lourenço, do Zambeze ao lena, do Mekong ao Amazonas, como se um rio ilustrasse todos os rios do mundo. Torna-se, pois, uma experiência de sensações, de encontros, de dialetos, de iguarias e de vinhos partilhados com esse «povo do rio», que se abre pouco a pouco para a imensidão do tempo de uma grande viagem interior. Simplesmente mágico.
Perante estes exemplos dá para questionar, porque é que o Tejo ou o Douro ainda não suscitaram algo assim.  É claro que poderemos sempre considerar Alves Redol, que dedicou ao primeiro os seus «Gaibéus», «Avieiros» ou «Glória: uma aldeia do Ribatejo». Ou o ciclo do «Port Wine» ao segundo. Não esquecemos igualmente algumas das páginas de Saramago inseridas na sua «Viagem a Portugal». Mas os projetos, primeiro de Magris, e mais recentemente de Rumiz, têm a ver com um aprofundamento das sensações geradas por paisagens, que marginam o Danúbio e o Pó, respetivamente, e encontrar-lhes fios condutores de uma cultura específica desde a nascente até à foz. Algo que seria muito interessante de constatar para o Tejo ou para o Douro desde as serras espanholas onde nascem e o Atlântico onde acabam por desaguar.
A exemplo do que os escritores italianos encontraram, seria possível discernir algo de específico nas populações ribeirinhas dos rios luso-espanhóis? À primeira vista ser-nos-ia difícil prever essa possibilidade tão diferentes elas se revelam mesmo dentro do território nacional. Mas, quer Magris, quer Rumiz só terão começado a entender esses traços comuns à medida que avançaram no conhecimento concreto dessas populações enquanto iam percorrendo as margens até aos seus deltas. E aqui sobra uma outra questão: a cultura inerente a um rio será diferente pelo facto de se resolver num delta ou num estuário? Tudo questões que ficam por responder…


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