A menos que um eventual alzheimer me venha a afetar em anos futuros nunca irei esquecer as primeiras linhas de «Cem Anos de Solidão». Perante o pelotão de fuzilamento o coronel Aureliano Buendia recordava aquele dia distante em que o pai o levara a conhecer o gelo, que o velho Melquíades costumava vir transacionar a Macondo. E seguiam-se depois páginas e páginas com sucessivas gerações de Buendias, desde o patriarca Arcadio, a envolverem-se em guerras sucessivas sempre sob o olhar vigilante da velha Úrsula, outra personagem difícil de esquecer.
Ficava definitivamente consagrado um dos três livros, com que desejaria contar se viesse a ficar abandonado na mítica ilha deserta. Os outros dois já os escolhera anteriormente e eram o «Memorial do Convento» de José Saramago e «Confesso que Vivi» de Pablo Neruda.
Aquele foi o meu primeiro romance de Gabriel Garcia Marquez e nenhum outro me conseguiria suscitar tanto fascínio, por muito que alguns se lhe tivessem aproximado em satisfação. Porque muitas outras memórias fecundas me ficaram de outros dos seus escritos: por exemplo o náufrago perdido dias a fio nas águas do Caribe cuja provação, salvação, consagração e rápido esquecimento, conheci na mesma época em que me andava a fascinar com essa cidade encantatória, que é Cartagena de las Índias. Ou também o coronel a quem ninguém escrevia cartas, apesar dele as esperar com uma ânsia inquebrantável. Ou a Cândida Erendira e a sua tenebrosa avó desalmada. Ou a pequena cidade acossada pelos panfletos clandestinos, que denunciavam os vícios privados sem que fizessem emergir quaisquer públicas virtudes. Ou o amor de Florentino por Firmina, que duraria mais de meio século sem nunca se conseguir concretizar. Ou o general perdido no labirinto das suas ilusões. Ou a erotização suscitada nas mulheres de uma aldeia à beira-mar pela chegada à praia do cadáver imponente de um náufrago. Ou...
São tantos os momentos de leitura gratificante suscitados pela imaginação de Gabo, que poderia ficar aqui a recordar tantas outras das suas personagens, presentes nos seus romances, contos, reportagens, ou sobretudo na sua biografia («Viver para Contar»), infelizmente deixada por concluir.
Mas Gabriel foi maior do que as suas milhentas páginas revelaram, porquanto também se assumiu como militante comprometido com as utopias do seu tempo, mesmo depois delas parecerem emurchecer sem remédio. E também um boémio, que nunca desistiu de combater os preconceitos e imperativos morais de uma religião transformada em arma de preservação de todas as injustiças, que as desigualdades na distribuição das riquezas, pressupõem.
Agora que foi anunciado o seu desaparecimento, fica a gratidão por quanto nos deu a conhecer. Sem as suas histórias teríamos ficado bem mais pobres. E convenhamos que, mesmo sem contarmos com novas criações saídas da sua lavra, as que nos ficam bastam para, em sucessivas releituras, nos prodigalizarem muitas e muitas horas de revisitado prazer. Porque se é conhecida a regra de não nos devermos arriscar no regresso aos sítios onde fomos felizes, as páginas deixadas por Gabriel Garcia Marquez são a melhor demonstração em como todas as regras - até essa! - terem de contar com a sua fundamentada exceção.
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