Saramago publicou «A Jangada de Pedra» em 1986, ou seja no mesmo ano em que Portugal e Espanha entraram simultaneamente no seleto clube da Europa comunitária.
Na época não eram muitos os que partilhavam o ceticismo do escritor quanto à bondade dessa opção. Se para ele a então CEE estava longe de celebrar a Europa dos povos, antes surgindo como a oportunidade de expansão do mercado por parte do capitalismo, os seus detratores iludiam-se com o acelerado investimento no betão por cavaco silva e com o dinheiro a rodos trazido pelos singulares cursos financiados pelo Fundo Social Europeu. Para estes últimos essa possibilidade de ver a Península Ibérica fraturar-se do resto da Europa algures pelos Pirinéus e avançar para uma indefinida deriva pelo Atlântico fora só poderia corresponder a um pesadelo?
E, no entanto, a quase três décadas de distância, só se pode admirar o quanto de visionário teve a perspetiva eurocética de Saramago, capaz de vislumbrar o futuro, - que é agora o nosso presente!, - em que os povos do sul da Europa empobrecem para que alemães, holandeses e outros povos do norte do continente enriqueçam.
Perante a crise das dívidas soberanas, que atingiu Portugal e Espanha com particular intensidade, faz sentido perspetivar até que ponto seria judiciosa essa opção por um outro futuro muito diferente do dessa desequilibrada integração europeia. Por isso a opção de João Brites e Rui Francisco em adaptar o romance para uma nova aventura teatral - depois de, há oito anos, nos ter brindado com o memorável «Ensaio sobre a Cegueira»! - não podia ser mais oportuno. Porque estamos num momento histórico em que faz sentido ponderar em todas as opções: ficar no euro ou regressar a uma moeda própria? Mantermo-nos ou não na União Europeia?
Agora que o entusiasmo com a nossa condição de cidadãos europeus se estiolou com o progressivo empobrecimento imposto à maioria dos cidadãos nos anos mais recentes, não é a reforma do Estado, que está verdadeiramente em equação. É que país queremos ter para que recuperemos o direito à felicidade.
Depois de apresentada em Santa Maria da Feira e no São Luís, o Bando apresenta agora a peça até dia 10 nas suas instalações no Vale dos Barris, E volta-nos a surpreender muito agradavelmente.
É certo que já não existem os meios, que foram investidos na anterior adaptação de Saramago, mas mantém-se a originalidade da encenação, a competência dos atores e atrizes e a eficácia da banda sonora de Jorge Salgueiro.
Se exigirmos a um espetáculo que nos impressione e surpreenda, estamos bem servidos durante quase duas horas. A estranheza das personagens em se verem projetadas para uma situação tão inexplicável, dá lugar à sua disponibilidade para aproveitarem a oportunidade e repensarem a sua vida em função de uma nova realidade em que nem sequer a orientação pelos pontos cardeais faz sentido.
A novidade e a falta de certezas quanto ao futuro a construir intimida mas, ao mesmo tempo, abre expectativas de se poder alcançar um patamar de realização da própria identidade, que não se julgaria estar ao seu alcance.
O que «Jangada de Pedra» nos propõe é o incentivo a perdermos o medo perante o que possa ser desconhecido. Porque nele poderá residir a grande oportunidade para que tenhamos da vida o que merecemos.
Até dia 10, a peça continuará em cena nas instalações do Bando em Palmela. E constitui mais uma proposta imperdível daquele que é um dos grupos mais estimulantes de entre os que mantém atividade regular na apresentação de propostas teatrais.
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