Coloquemos a questão assim nestes termos: há muitos anos que, entre Saramago e Lobo Antunes, prefiro incondicionalmente o primeiro. Da mesma forma, e noutro género literário (se é que chega a ser Literatura!), entre Robert Harris e Dan Brown, a atitude é semelhante: ler com agrado o primeiro, não ter a mínima pachorra para o segundo!
Estando agora a apresentar o seu título mais recente - «An Officer and a Spy» - o autor inglês não podia imaginar ao iniciá-lo o quanto ele se viria a revelar particularmente atual por estes dias. De facto, embora incidindo sobre o enorme escândalo político, que foi o Caso Dreyfus na França do final do século XIX, o livro suscita paralelismos inquietantes com as escutas da NSA a milhões de pessoas um pouco por todo o mundo.
A grande questão tratada no livro é esta: o que se passa quando os serviços secretos ficam em roda livre, quando os membros do governo mentem para iludir outras mentiras, quando se procuram bodes expiatórios e quando os tribunais deixam de cumprir o seu dever de fazerem justiça?
"O que eu mais gosto é escrever sobre o poder e as organizações e de como elas afetam a vida de todos nós. Este caso serve de exemplo para mostrar como, em qualquer sociedade e em qualquer momento da História, as burocracias tentam encobrir os seus erros, em nome do superior interesse da Nação.
Enquanto escrevi o livro fui encontrando razões para radicalizar a minha opinião sobre o assunto. Creio que não voltarei a olhar para o Governo ou para as Forças Armadas da forma como antes os via”.
Recuando cerca de cento e vinte anos, Robert Harris conta o processo de Dreyfus segundo a perspetiva do coronel Georges Picquart, o único militar de entre os que eram mais graduados no Exército francês, a desconfiar das conclusões apressadas do Serviço de Estatísticas do Exército, que estava fortemente contaminada pela extrema-direita antissemita de então, e a não se conformar com a possibilidade de se tratar de uma ignominiosa injustiça!
De facto, em 1894, o capitão Alfred Dreyfus, o único judeu do Estado-Maior, foi acusado de ter divulgado segredos militares à Alemanha. Condenado em conselho de guerra, ele vê-se alvo de uma violentíssima campanha mediática, que o transforma num monstro. Os jornais conseguem, de facto, manipular a opinião pública contra o militar.
No entretanto sucede-se um turbilhão de acontecimentos com documentos falsos, demissões de ministros, atentados e tentativas de golpes de Estado.
A Terceira República entra numa crise insolúvel e o antissemitismo ganha inaudita expressão com hordas de rufiões a preparem-se para levar a eito progroms contra os judeus, tidos por traidores à França.
Já o condenado estava a padecer as agruras da deportação na Ilha do Diabo, quando Zola e outros intelectuais começam a agitar a opinião pública em sentido contrário: é que, entre a lealdade ao Exército a que pertencia ou o imperativo moral de ver satisfeita a justiça, o coronel Picquard não descansara enquanto não reúne as provas necessárias para fazer emergir a verdade.
Nos dias de hoje a violentíssima condenação ao soldado Bradley Manning ou a perseguição tenaz a Julian Assange ou a Edward Snowden, mostra como a “democrática” América não olha a meios para alcançar os seus fins. Desprezando os valores democráticos e as mais elementares noções de decência. E tentando esconder aquilo que se torna uma evidência cada vez mais tenebrosa da forma como encara a ação dos seus serviços de espionagem.
O romance acaba de ser editado em Inglaterra e, a exemplo de outro título do autor - «O Escritor Fantasma» - tudo aponta que será em breve filmado por Roman Polanski.
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