sexta-feira, 15 de novembro de 2013

LIVRO: «O Profanador» de Philip K. Dick

Pode alguém ser quem não é?
A questão posta na canção do Sérgio Godinho coloca-se igualmente a Allen Purcell, o patrão de uma agência de conteúdos do século XXII, que começa a sentir-se demasiado asfixiado pelos dogmas da sociedade totalitária em que vive, para nela se comportar com a docilidade exigida.
Já se passaram dois séculos desde que uma guerra termonuclear quase destruiu a civilização, reerguida graças à pertinácia do major Stretter, o sul-africano responsável pela ideologia de controlo de todos os cidadãos pelos seus vizinhos e conhecidos para não prevaricarem quanto aos princípios morais estabelecidos.
O paradoxo é que Allen é convidado para liderar toda a propaganda do regime, ao mesmo tempo que, em estado de sonambulismo, começa a subverte-lo de forma prática ao levar por diante a heresia de cortar a cabeça à estátua principal de Stretter num dos parques da cidade.
Ciente de não conseguir resolver por si mesmo a sua contradição, ele consulta secretamente um psicólogo, mas o “tratamento” é radical: drogado, é levado para outro planeta, onde a sua irreverência possa ter cabimento.
Mas não é isso que dita a sua consciência: ele está mesmo decidido a liderar a propaganda do regime, como forma de o conseguir alterar nalguns dos seus aspetos mais radicalmente hediondos.
Não conta é com a inveja dos concorrentes, que lhe disputam o lugar e estão prontos para levar por diante ações menos escrupulosas para o comprometerem. E Allen vê-se apanhado em flagrante numa das proibições morais mais intoleradas pelo regime: o adultério.  Mesmo não se tratando senão de um equívoco para o qual em nada contribuíra.
Despedido do cargo, Allen aproveita os últimos dias à frente da T-M para lançar uma derradeira campanha de descredibilização do regime: denunciar Stretter e os sobreviventes da catástrofe de dois séculos atrás como canibais, que só graças ao assassinato e degustação dos inimigos tinham sobrevivido.
Cumprida essa missão de consequências imprevisíveis ele ainda conta fugir para outro planeta, mas recua no último momento. Talvez esperançado numa mudança definitiva da situação, decide ficar e enfrentar o que lhe possa suceder...
Publicado em 1956, este romance de Dick não é um dos seus melhores, mas contém algumas das características essenciais da obra do autor de «Blade Runner»: um personagem desajustado de uma sociedade, que o oprime e que acaba por modificar. Neste caso o final é aberto e não pressupõe qualquer redenção libertadora, mas fica a ideia de tudo poder constituir uma melhoria em relação ao clima sufocante em que se então vive. E se pensarmos que, em 1956, a caça às bruxas pelo senador McCarthy ainda estava bem atual no dia-a-dia dos norte-americanos, pode-se conjeturar o quão pertinente é esta abordagem de um tipo de sociedade onde todos se espiam e são incentivados a cumprir com preceitos morais e ideológicos particularmente restritivos.
E como as tentações totalitárias são bastante frequentes no imaginário pessoal de muitos dos detentores do poder, é caso para concluir que «O Profanador» mantém a capacidade de alerta perante uma sociedade disposta a render-se acriticamente ao que um líder iluminado lhes impõe...


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