Miron acaba de perder a sua amada Tanya em Neïa, uma cidadezinha na Rússia Central, onde dirige uma fábrica de papel. O seu melhor amigo, Aist, também trabalha na fábrica e acompanha-o na viagem em que irão cumprir o ritual dos Méria, cremando o corpo da defunta nas margens do rio Volga, de forma a imortalizar-lhe a alma.
Durante essa viagem o viúvo deverá contar ao amigo os pormenores mais íntimos da vida conjugal. Mas, nenhum deles suspeita que, além de constituir a última viagem de Tanya, também será a deles...
A história do filme radica-se na cultura de um povo desconhecido e misterioso: a tribo russa dos Méria. As suas raízes são mais finlandesas do que eslavas e distinguem-se dos outros russos pelos seus rituais ancestrais. Por exemplo o amor e a água são-lhes duas ideias sagradas, apesar de não acreditarem em nenhum deus.
O filme insiste nos aspetos mitológicos, que estão em vias de extinção, já que os Méria estão cada vez mais diluídos no seio da comunidade russa.
O realizador explicou o seu projeto nestes termos: foi a minha forma de mostrar uma outra Rússia - a das tradições pagãs e o tipo de relações humanas existentes antes do predomínio ortodoxo. Quis reinventar um mundo delicado, guiado pela pureza, pela sinceridade entre as pessoas. Um mundo que está ao alcance de todos nós, mesmo que inexistente de facto.
O início evoca «Os Pássaros» de Hitchcock, quando Aist compra dois pássaros num mercado, que terá de levar consigo na viagem para que Miron o convidou. Embora não imaginemos que isso possa ocorrer, eles acabarão por ter um papel determinante no desiderato do filme, já depois de concluída a cerimónia fúnebre nas margens do local aonde Miron e Tanya haviam passado a lua-de-mel.
Até então, acompanhamos a viagem desses dois homens transfigurados pela tristeza e cúmplices no ritual poético de um luto imemorial através de paisagens elegíacas. Estamos inegavelmente naquela Rússia tão típica de Tarkovski em que a melancolia se torna por vezes tão voluptuosa que se torna desejável.
Aist cumpre o papel de narrador em voz off, algures num futuro determinado, já conhecedor de tudo quanto entretanto sucedera sem, porém, o revelar. Esta opção favorece a interioridade da narrativa, ao mesmo tempo que introduz um distanciamento só explicado no final da viagem.
Assinado por um realizador quase desconhecido, «A Última Viagem de Tânia» é um filme saturado de beleza e de mistério.
A beleza é o movimento lento que conduz esses dois homens pelos vestígios da cultura méria e os faz desembocar no rio, onde se interliga o passado e o presente, a vida e a morte, reverenciado enquanto fonte da imortalidade.
A longa sequência da cremação e das cinzas despejadas no seu leito é magnífica e silenciosa, própria de uma transcendência sem pompa. O filme acaba por ser um hino à precariedade carnal e à perpetuação da vida, mesmo que à custa de uma erotização da ausência.
Um flash-back reinventa com uma vitalidade sensual, um rito pelo qual as jovens damas de honor tecem laços coloridos nos pelos púbicos de uma noiva. Laços que serão depois expostos num álamo. E a mesma lógica preside ao encontro dos dois homens com duas prostitutas, que vemos em pleno ato sexual, mas sem a presença visível dos homens que as copulam.
O mistério vai-se adensando em sucessivas questões sem resposta: teria Aist amado Tanya? Ter-se-ia ela entregue a ele para redimir a esterilidade conjugal? Teria Miron levado Aist naquele périplo como forma de vingança?
Seguimos estas diversas pistas até ao momento em que o filme desvenda o seu terrível segredo, o tal onde os pássaros da cena inicial encontram a justificação para a sua presença.
O filme constitui uma verdadeira pérola e revela um realizador a cuja obra convirá ficar atento.
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