terça-feira, 19 de novembro de 2013

FILME: «Anatomia de um Crime» de Otto Preminger (1959)

«Anatomia de um Crime» é daqueles filmes, que nos mitigam as saudades pelo grande cinema norte-americano dos anos 50, fadados que estamos a vê-lo atualmente como apenas destinado ao público adolescente da pipoca e da coca cola.
Realizado em 1959, quando os EUA saíam do tenebroso período em que o macartismo condicionara tantas vidas em Hollywood, também subverte garbosamente o púdico código Hayes, ainda então vigente nos principais estúdios cinematográficos, apesar de lançado quase três décadas antes. O termo “cuequinha” será por isso mesmo usado e abusado ao longo das sessões de tribunal em que as personagens debatem o sucedido em torno de um homicídio relacionado com uma prévia violação. Assim como, em fase mais avançada do filme, não se deixará de falar de esperma ou da falta dele num caso de estupro.
À distância de mais de meio século continua a ser um dos melhores filmes desse género em que advogados, procuradores e juízes dissecam a verdade e as mentiras de uma situação mais complexa do que, à partida, se esperaria. Com um resultado final, que contenta o espectador - a declaração de inocência do réu defendido pelo protagonista -, mas que, bem vistas as coisas tal qual se apresentam na cena final, era bem capaz de não ser assim tão inocente. Nesse aspeto, Preminger acaba por deixar para reflexão algumas pistas interessantes sobre os limites da justiça e o quanto ela depende das estratégias de manipulação de quem decide (os jurados) por parte de quem acusa ou de quem defende.
O protagonista é o advogado Paul Biegler, interpretado por James Stewart, que sobrevive miseravelmente numa pequena cidade do Michigan: Iron City.  Durante anos, ele fora o procurador local, mas acabara por ser traído por um colega, que lhe surripiara o cargo. Agora, fora um ou outro caso de divórcio, ou uma cobrança de dívida por pagar, quase não tem clientes. Daí que passe o dia a pescar no lago mais próximo da cidade e a beber com o seu velho amigo Parnell McCarthy (Arthur O’Connell), também ele advogado, mas já reformado.
O filme começa, precisamente com o regresso de Paul de uma dessas sessões de pesca e com a sua secretária, Maida (Eve Arden) a deixar-lhe o recado para falar com uma tal Mrs. Manion (Lee Remick), cujo marido estava preso, acusado de matar o dono de um bar, que a violara.
Claro que o objetivo de Laura Manion é contratar Paul para defender Frederick em tribunal. O problema é o de não ter com que lhe pagar de imediato, apesar dele estar colocado numa base do Exército na região como tenente.

Seja pela oportunidade em sacudir o tédio, seja porque Laura o estimula pela sua ousada figura, Paul acede a corresponder positivamente ao seu pedido. Mesmo sendo-lhe difícil sentir alguma empatia pelo réu, quando o visita pela primeira vez na prisão: Frederick Manion (Ben Gazzara) é o paradigma do brigão arrogante, violento e presunçoso. Ademais, com ciúmes doentios pela mulher, até por ela não se coibir em atrair para si a atenção de todos os homens, que lhe passem pela frente.
Esse é o grande problema, que Paul tem de enfrentar nos dias seguintes: quando a encontra a dançar num bar, aonde Duke Ellington e a sua orquestra animam o baile, ele desvia-a dali e impõe-lhe um restritivo código de conduta para as semanas seguintes. Até ao fim do julgamento ela terá de se parecer com uma dona de casa bem comportada, com óculos de aros antigos, vestuário  austero, e ficar longe dos homens, dos bares e da bebida.
A estratégia de Paul no julgamento passa por interligar o crime com o estupro de Laura, apesar das resistências do Procurador para que ele não fosse sequer mencionado. O que está em julgamento não é a agressão sexual reclamada por Laura, mas o homicídio cometido nessa mesma noite.
Paul tem a sorte de contar com a compreensão do velho juiz, papel desempenhado por um advogado corajoso, que participara nas investigações de eventuais infiltrações comunistas no Exército norte-americano e se celebrizara por, numa das sessões, ter confrontado o senador Joseph McCarthy com perguntas assassinas:
- O senhor já foi longe demais. O senhor não tem o sentido da decência? Finalmente, ão sobrou para o senhor nenhuma réstia de decência?
Fica para a História que a queda em desgraça do senador alcoólico e violento, que tantas vidas desgraçou, terá começado precisamente aí, apesar de outros contributos não menos relevantes como o poderão ter sido os de Humphrey Bogart ou John Ford.
Quando toda a sessão do julgamento parece correr da melhor forma para os interesses dos Manions, o procurador da cidade é substituído por outro, bastante mais competente, vindo de Lansing, uma cidade de maior importância.
Dancer (George C. Scott) não é o pateta, que substituíra Paul como procurador de Iron City. É inteligente, cínico quanto baste, e decidido a acrescentar mais um escalpe no seu historial. E Frederick Manion parece ajustar-se perfeitamente aos seus propósitos. Ou sobretudo Laura, cuja imagem em Tribunal ele desmascara, realçando-lhe a beleza e a condição de provocadora dos apetites masculinos. Para ele tudo se resume a demonstrar que Barney Quill fora suficientemente estimulado para julgar Laura recetiva aos seus avanços e só temia as consequências de se ver confrontado com um marido ciumento.

As esperanças de Paul passam a residir na filha clandestina do morto que, dois anos atrás, ele fora buscar ao Canadá para o ajudar na estância. É dela que pretende o testemunho quanto à brutalidade do morto. Mas Mary escusa-se a fazê-lo não acreditando nessa tese, que até encara como insultuosa.
Para Manion a situação ainda se agrava mais quando um colega de cela vem depor contando que ele lhe dissera ter os jurados no papo por serem uns campónios, e que, tão só libertado, iria agredir violentamente a mulher que designara como cabra.
O testemunho definitivo vem mesmo de Mary Pilant, a filha de Barney, que começara a vacilar na sua convicção quando, nessa mesma manhã, descobrira a importância das cuequinhas de Laura no julgamento e que ela encontrara rasgadas na lavandaria da estância, quase por certo ali deixadas pelo pai. Uma prova determinante de quanto elas haviam sido retiradas com uso da violência.
Desconhecendo o parentesco entre ela e Barney, Dancer aperta com ela no depoimento, chegando a sugerir-lhe a possibilidade de não ter grande legitimidade moral para intervir no julgamento por viver com Barney Quill sob o mesmo teto, possivelmente por ser dele amante. A súbita decisão em prestar juramento dever-se-ia assim ao ciúme de se ver preterida pelo morto.
Quando Mary decide revelar a sua verdadeira condição de filha de Barney, Dancer sente a surpresa do xadrezista, que está a cercar o rei inimigo e se vê perante um inesperado xeque-mate.
Paul consegue ganhar o processo, que relançará a sua carreira de advogado para a qual contará com a ajuda de Parnell. Mas a conta dos Manions ficará por receber: depois de dar uma tareia monumental em Laura, Frederick fizera-a entrar na roulotte e partira dali para desconhecidas paragens...


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